São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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"CAHIERS"

DA REDAÇÃO

Sinto claramente que sou um esboço. (I, 38)

Meu primeiro amor foi a arquitetura, e tanto a arquitetura dos navios quanto a dos edifícios terrestres. A formação do espaço segundo os sólidos, a imaginação das estruturas, das alturas sustentadas, a arte de criar uma passagem ou um lençol de pedras, a de passar de uma fachada de uma construção para outra, a embriaguez da tectônica, das relações sensíveis... tudo me possuiu. O pitoresco, em primeiro lugar -depois livrei-me dele para amar o orgânico.
Ainda não sei expressar corretamente o que eu amava nas construções. Parece-me que eu encontrava confusamente nelas e idéia de atos nobres, -de mecanismos- de movimentos sobre-humanos que penetraram no real. Os materiais estiveram em movimento até uma certa posição em que se incomodaram. Nada me toca mais do que o domínio e a arbitrariedade e até o abuso de poder quando esta liberdade é imposta a algo que não é livre, quando o penetra e se mede a suas leis.
A arte da edificação era, para mim, um pensamento caro e excitante. Sentia-me bem ao imaginá-la. Foi a partir desta satisfação que imaginei o homem, a árvore e o cavalo. (I, 81)

Pensador! Nome ridículo -É contudo possível encontrar um homem que não seja filósofo ou poeta, que não possa ser definido pelo objeto de seu pensamento, ou pela busca de um resultado externo, livro, doutrina, ciência, verdade... mas que seja pensador como se é bailarino, e que usa sua mente como este usa seus músculos e nervos; que, percebendo suas imagens e sua espera, suas linguagens e seus possíveis, suas escutas, suas independências, suas imprecisões, suas clarezas, -diferencie, preveja, explicite ou deixe de lado, se entregue ou recuse- circunscreva, desenhe, possua e perca a si mesmo... não tanto artista do conhecimento quanto artista de si, que ele prefere a todo conhecimento; sendo ele (o conhecimento) nada mais do que o ato particular que ele (o pensador) pode, afinal, tornar sempre mais refinado, mais verdadeiro, mais elegante, mais espantoso, mais universal ou mais singular - etc. (I, 334)

Se os grandes jogadores de bridge ou de xadrez soubessem!
Se soubessem que seus dons e seus talentos tão especiais e que por vezes os tornam tão comuns quanto aos outros usos da mente poderiam, com uma leve e superficial modificação de suas máquinas mentais, produzir na ordem das Letras ou da filosofia obras extraordinárias!...
Existem muito mais combinações consequentes em suas mentes do que nas de quase todos os autores; e apenas uma diferença de convenções, num caso muito explícitas e arbitrárias, no outro vagas e aparentemente exigidas por condições reais, -separam sua atividade da nossa.
Uma obra do espírito é uma partida jogada entre alguém e um desconhecido -que se faz de morto enquanto a obra é fabricada e o autor joga em seu lugar. Mas esse morto ressuscita -e acontece o contrário. O autor se faz de morto por sua vez -e às vezes morre. (I, 373)

O homem só vê, ouve, toca a si mesmo. A física só pode ser antropomórfica. (I, 503)

Não há mais metafísica possível a partir do momento em que as noções de utilidade (finalidade), de inteligência, de mundo, de fabricação, de desejo ou amor, de prazer, de sofrimento, de causa etc. etc. passam a ser concebidas como possuidoras de valor apenas em nossa escala -assim que podemos demonstrar racionalmente que só são definidas numa região finita.
(A lua está tão nítida, uma noite, que acreditamos poder tocá-la e apalpar sua superfície e sentir suas asperidades.)
Aliás, quanto mais nos aprofundamos, mais aproximamos, mais agarramos o que encontramos -o real aparente-, mais perto chegamos do ininteligível, do sem-forma-quanto-ao-homem; do dessemelhante -A verdade não se assemelha a nada.
Quer dizer que a insuficiência de todos esses conceitos e de todas as nossas analogias se tocam.
Nosso conhecimento supera então de alguma forma seu rendimento útil.
Não só a quantidade dos fatos como sua qualidade nos supera. O microscópio mostra coisas que não se assemelham a nada.
Somos pois forçados a considerar nossa compreensão comum, nosso funcionamento psíquico normal efetuado entre percepções e razões a partir dos sentidos, -como uma espécie de convenção. E, de fato, com uma variação de ponto de vista, somos levados a constatar a existência de campos do real -até mesmo dentro de nós!- que ultrapassam toda concepção.
Ora, não se pode adotar uma metafísica que só servisse para uma parte da realidade OBSERVÁVEL. (I, 518)

Tudo o que é, se não fosse, seria imensamente improvável. (I, 533)

A matemática, entre outras coisas, ensina a tenacidade contra as consequências e o rigor do caminho uma vez escolhido arbitrariamente. Ela é, então, o modelo do arbitrário. (II, 780)

O que devemos tomar das Ciências não é uma analogia vã de suas leis físicas com as leis do espírito -é seu rigor, sua tensão, sua dificuldade pura, seu modo correto de definir, sua busca das operações. (II, 834)

As Obras belas são filhas de sua forma -que nasce antes delas. (II, 1.022)

O poema, hesitação prolongada entre o som e o sentido. (II, 1.065)

A poesia não precisa expor idéias. As idéias (no sentido comum da palavra) são expressões, ou fórmulas. A poesia não está nesse momento. Ela está no ponto anterior -em que as próprias coisas estão como que grávidas de idéias. Ela deve assim formar ou comunicar o estado sub-intelectual ou pré-ideal e reconstituí-lo como função espontânea, com todos os artifícios necessários. (I, 1.091)

Um bom poema é silencioso. (II, 1.102)

Tudo o que é verbal é provisório. Toda linguagem é meio. A poesia procura fazer dele um fim. (II, 1.113)

Uma nação encontra-se na anarquia quando um povo considera seu governo como ele é. (II, 1.449)

Em democracia -regime da palavra ou dos efeitos da palavra- tudo se torna "político.
E "político, em democracia, significa mais ou menos "dramático. Tudo refere-se às impressões de um público. Aplicam-se as leis do teatro. Simplificação, ilusão perpétua sob pena de riso e de morte. Tudo pelo efeito. Tudo no instante. Papéis claros. O que é difícil de entender está proscrito. O que é difícil de expressar não existe. O que requer longos preparativos, uma atenção prolongada, uma memória exata, indiferença com relação ao tempo e à iluminação torna-se impossível.
Uma palavra que escapa acaba com um homem de primeira ordem. (II, 1.454)

EPITÁFIO

JAZ AQUI O EU
MORTO PELOS OUTROS
(I, 159)

Tradução de CRISTINA MURACHCO

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