São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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O lado humano de nosso macaco

MEREDITH F. SMALL
DA ``NEW SCIENTIST"

É difícil levar um macaco a sério quando está usando camiseta vermelha e chapéu na cabeça. Mas mesmo quando o pequeno macaquinho não está funcionando como coadjuvante de algum tocador de realejo, ele não ganha o respeito que merece.
Há décadas os cientistas consideram pequenos macacos, como o mico, macaco-prego e outros macacos da América Central e do Sul- inadaptados.
Os antropólogos não têm dado atenção aos macacos do Novo Mundo porque eles não têm um vínculo tão próximo com os humanos quanto os primatas africanos e asiáticos.
Mas agora tudo isso está para mudar. Os macacos do Novo Mundo se tornaram muito importantes para as pesquisas sobre a evolução dos primatas.
Um fator crucial nessa virada foi uma ousada reavaliação das relações evolutivas entre os seres humanos e outros primatas.
No ano passado, Anthony Di Fiore e Drew Rendall, da Universidade da Califórnia em Davis, publicaram um estudo na revista da Academia Nacional de Ciência em que afirmam que os macacos do Novo Mundo, tais como o cebo, não são apenas um desdobramento pouco importante da árvore familiar dos primatas. Eles fazem parte do tronco do qual descendem todos os antropóides e humanos.
Como consequência, os cientistas estão tendo que rever suas idéias sobre o primata ``típico". De acordo com a visão tradicional, os primatas costumam viver em grupos em que as fêmeas formam laços estreitos, e os machos deixam o grupo quando atingem a maturidade sexual.
Mas agora os antropólogos estão tendo que incorporar em sua visão da evolução hominídea a flexibilidade sexual dos macacos do Novo Mundo, sua falta de hierarquia e sua gama mais ampla de estruturas sociais.

Modelo
Na década de 60, quando os antropólogos começaram a sair a campo para observar outros primatas, seu objetivo era claro.
Os primatas não-humanos poderiam funcionar como modelos de nossa evolução humana primitiva.
Observar esses animais em seu habitat natural e compreender como formam grupos sociais e interagem entre si certamente podem fornecer pistas sobre o comportamento de nossos ancestrais mais primitivos.
Os chimpanzés pareciam ser os candidatos mais óbvios para essa abordagem, pois humanos e chimpanzés compartilharam um ancestral comum, cerca de 8 milhões de anos atrás, e ainda compartilham cerca de 98% de seus genes.
Mas as duas espécies passaram esses milhões de anos evoluindo e adaptando-se a estilos de vida muito diferentes, de modo que os pesquisadores precisavam encontrar um primata menos especializado para servir de modelo aos humanos primitivos.
Os babuínos pareciam ser a escolha certa. Embora seu parentesco com os humanos seja mais distante, eles compartilham nossas origens africanas e passam a maior parte de seu tempo na savana, presumivelmente enfrentando os mesmos problemas que afetavam nossos ancestrais.
Os pesquisadores descobriram que os babuínos e as cerca de 40 espécies de macacos africanos e asiáticos de sua ordem, a dos cercopitecíneos, apresentam um padrão de comportamento comum.
Em seu sistema social típico, as fêmeas permanecem com suas mães, enquanto os machos deixam o grupo ao atingir a maturidade sexual, para ingressar em outros.
Quando se tornam adultos, esses machos sem parentes não formam vínculos sociais fortes e enfrentam grande concorrência pelas fêmeas no cio.
Já as fêmeas formam vínculos fortes porque permanecem em seus grupos de origem. Os cercopitecíneos, tanto machos quanto fêmeas, interagem através de uma rede de status social, onde cada macaco ocupa posição superior a outro, e os machos ocupam posição superior às fêmeas.
Essa ordem hierárquica é reforçada diariamente. Os macacos empurram uns aos outros para ocupar os lugares prediletos e viram seus traseiros em sinal de submissão a babuínos dominantes.
Os macacos do Velho Mundo, e em especial os babuínos, logo se transformaram nos ``primatas modelos" dos antropólogos, o melhor retrato -ou pelo menos é o que se pensava- do esquema antigo que serviu de ponto de partida para a evolução dos humanos.
Agora alguns cientistas estão sugerindo que nos últimos 30 anos essa ``preferência injustificada por babuínos" tenha deturpado a história das origens humanas.
Como observa Rendall, ``todo mundo gostou do modelo dos cercopitecíneos porque eles são tão bem estudados, todos pareciam ser tão semelhantes entre si, então todo mundo os qualificava de primatas normativos superiores".
Assim, o sistema caracterizado pelos ``vínculos entre fêmeas" tornou-se o esquema padrão ao qual todos os outros seriam comparados.
Os antropóides, entre os quais as fêmeas geralmente são solitárias, eram considerados especializados -imaginava-se que em algum ponto houvessem se desviado do padrão mais fundamental dos babuínos.
Karen Strier, antropóloga da Universidade do Wisconsin, recentemente publicou um grande estudo em que questiona o padrão dos cercopitecíneos e pede uma visão mais ampla.
Ela acha que chegou a hora de reconhecer a diversidade dos comportamentos primatas e tentar compreender as implicações dessa diversidade na evolução humana.
O que surpreende -como reconhecem Strier e outros- é que os protagonistas dessa revolução são os antes difamados macacos sul-americanos.

Inspiração brasileira
Cerca de 25 milhões de anos atrás, quando os macacos eram tão abundantes quanto são os camundongos hoje, o mundo tinha uma aparência bastante diferente da atual.
A América do Sul ficava longe da América do Norte, mas perto da África. Embora ninguém saiba ao certo como esses macacos chegaram à América do Sul (não existem evidências fósseis), a explicação mais razoável é que várias espécies de macacos africanos tenham inadvertidamente atravessado a pequena distância que separava a África da América do Sul, boiando sobre ilhotas de terra pantanosa.
À medida que os dois continentes foram se afastando, essas espécies de macacos acabaram isoladas, mas fizeram bom uso de seu novo território e terminaram por espalhar-se pela América do Sul inteira e, depois, para a América Central, ponto de junção das duas Américas. Os macacos cresceram e se multiplicaram -hoje há 16 gêneros.
Comportamentalistas dedicados descobriram que as características dos macacos do Novo Mundo são sua diversidade e flexibilidade.
O aspecto mais notável é a ampla gama de sistemas de acasalamento que eles ostentam. Alguns vivem em grupos monogâmicos onde um macho e uma fêmea acasalam, e o pai cuida dos filhos, mesmo que sejam gêmeos.
Outras espécies vivem de forma comunitária, na qual as fêmeas acasalam com todos os machos disponíveis, que esperam sua vez com paciência -raramente brigando sobre fêmeas, como fazem os macacos machos do Velho Mundo.
Todos os tipos imagináveis de dieta, sistema de acasalamento e sistema social podem ser encontrados nos estilos de vida e no comportamento diário desses animais.
Pequenos grupos de macacos-aranhas saltam de árvore em árvore, vasculhando as copas mais altas em busca de frutas.
Outras espécies passam seus dias em grupos grandes, nas árvores, digerindo seus alimentos, enquanto outras ainda se deslocam ruidosamente pela floresta amazônica em busca de insetos para complementar sua dieta, à base de frutas. Esses macacos todos não passam muito tempo cuidando uns dos outros ou ocupando lugares hierarquicamente distintos. E não só os machos, mas também as fêmeas costumam migrar de seu local de nascimento para outros bandos ou territórios.
Mesmo assim, esses conhecimentos todos poderiam apenas haver reforçado a imagem esdrúxula que se fazia dos macacos do Novo Mundo, se Strier não tivesse ido ao Brasil no início dos anos 80. Sua meta era explicar o comportamento estranho do muriqui, ou macaco-aranha peludo. Mas quando começou a seguir os bandos de muriquis pela floresta, um pensamento herético lhe veio à cabeça. ``Talvez eu sempre tenha visto os muriquis do ângulo errado", foi o que ela pensou.
O elemento crucial no raciocínio de Strier era o fato de que em pelo menos metade dos gêneros primatas, a ``regra" de transferência dos machos não se aplica. Em muitas espécies, tanto fêmeas quanto machos se dispersam, ou mesmo apenas as fêmeas. E quando não existe um vínculo forte entre as fêmeas, outros padrões ``típicos" de vida social se desintegram: a matrilinearidade desaparece, o parentesco e a hierarquia perdem importância.

Nova teoria
Este ano essa visão mais ampla da vida primata passou a contar com o apoio de Rendall e Di Fiore, da Universidade da Califórnia em Davis, que catalogaram 25 características comportamentais de 33 gêneros primatas e fizeram um computador avaliar suas semelhanças e diferenças.
Descobriram que os macacos do Novo Mundo constituem um grupo grande e amplamente diversificado, enquanto os do Velho Mundo perfazem um grupo à parte dos outros primatas.
Essa análise realça as fortes semelhanças existentes entre os primatas, desde que se exclua os macacos do Velho Mundo.
Por exemplo, são as chimpanzés fêmeas que deixam o lar, e os machos que vivem uma vida feita de vínculos sociais.
Esse tipo de sistema social também é visto entre os macacos-aranhas sul-americanos. E alguns lêmures, alguns macacos sul-americanos e os pequenos andróides gibões levam vidas monogâmicas, orientadas à família.
Em outras palavras, existem sistemas análogos comuns a diferentes espécies, que indicam uma herança comum, desde que se elimine a regra dos vínculos entre fêmeas.
O novo esquema padrão de primata típico pode incluir características como a dispersão das fêmeas, a capacidade de negociar situações sociais sem recorrer às primazias hierárquicas e uma diversidade de sistemas de acasalamento.
Essa nova perspectiva expandiu o palco sobre o qual se deu a evolução humana. Hoje os antropólogos já não podem voltar-se a um único modelo de macaco e traçar o roteiro de nosso passado.
E embora os macacos do Novo Mundo ainda não tenham tirado o lugar de seus parentes do Velho Mundo, como astros dessa peça, eles finalmente atingiram o status sonhado por qualquer coadjuvante: o de importância igual.

Tradução de Clara Allain

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