São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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Lá vai o barquinho

O escritor judeu-tcheco de expressão alemã Franz Kafka (1883-1924), por ter explorado em sua rica literatura o absurdo do poder da burocracia e a fragilidade do homem comum diante das estruturas do Estado, da família etc., acabou tendo seu sobrenome transformado em sinônimo das situações surreais e disparatadas impostas por uma realidade que no mais das vezes não faz o menor sentido. Kafka viveu em Praga. Se tivesse conhecido Brasília, talvez sua obra fosse ainda mais rica.
A última kafkiana do planalto veio da Marinha. Uma esdrúxula Diretoria de Portos e Costas do Distrito Federal -que portos, que costas?; Brasília fica a mais de 800 km, em linha reta, do litoral mais próximo- enviou à Câmara dos Deputados um ofício ameaçando interditar um pequeno barco a remo de propriedade do Legislativo.
A embarcação é utilizada por funcionários da Câmara para limpeza do espelho d'água que circunda o Congresso Nacional e para a alimentação das aves que lá habitam.
Segundo a ciosa Diretoria, o barco está desrespeitando o Regulamento para Tráfego Marítimo. O espelho d'água em questão tem cerca de 200 por 300 metros e 50 centímetros de profundidade. Além do barquinho da Câmara, lá só ``navegam" patos, cisnes e muita sujeira. Parece difícil, portanto, que a embarcação constitua uma ameaça para o ``tráfego marítimo".
De qualquer forma, a Diretoria exige que a embarcação seja matriculada na Capitania dos Portos, sob pena de interdição e multa de R$ 7,80 a R$ 312. Aliás, bonitos valores, quem será que calcula com tamanha precisão a proporcionalidade da pena ao delito?
Supondo-se que toda a navegação em todos os portos, praias, rios e lagos do Brasil estivesse entre as melhores do mundo em termos de controle e segurança, talvez aí a exigência da Marinha brasiliense pudesse ser considerada um simples excesso de zelo.
A situação, infelizmente, não é bem assim. A atitude da Marinha parece mais um exercício impensado de cego apego a normas burocráticas, insensível a qualquer vestígio de inteligência. Este, aliás, é um vício da administração pública nacional que em muito vem contribuindo para afastar o país de sua vocação para o desenvolvimento. Faltam-nos apenas alguns Kafkas para denunciar esses vícios e tentar pôr-lhes um freio.

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