São Paulo, domingo, 16 de julho de 1995
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negozinho fala meerrmo

MARILENE FELINTO
NEGOZINHO FALA MEERRMO

Cavalgar, atirar uma flecha, falar a verdade. Não há imagem mais parecida com escrever do que essa frase do filósofo alemão Nietzsche. Escrever o que se quiser, do jeito que se quiser, ou melhor: do jeito que a coisa sair. Em nome de quê? Não sei. Escreve-se por respeito ao que se vai dizer, só isso. Por respeito à palavra ou a si próprio, o autor dela.
Não falo dos escritores apavorados, que têm medo de escrever, como observou a escritora Marguerite Duras. Esses são os autores de livros fabricados, como dizia ela, organizados, regulamentados, convenientes, adequados. Escritores que exercem em relação a si mesmos a função do revisor; policiais de si mesmos.
Falo de gente da linhagem dos ateus, descrentes, pessimistas -mas também dos crentes e otimistas cegos-, para quem segredo e sagrado são noções relativas. Gente sem pai nem mãe, sem amigos nem amantes, na hora do vamos ver da escrita, quando fatos e pessoas reais perdem qualquer importância que porventura antes tivessem.
Escrever é, portanto, a liberdade máxima, e a mais extremada das solidões. É tarefa para corajosos. Os covardes apenas brincam de escrever, ou são revisores, redatores, tradutores. Mas não se avexem, pois não há mérito algum na coragem de escrever. As perdas são incomparavelmente maiores que os ganhos.
Só se escreve porque não se suporta viver certas coisas da vida sem escrevê-las. Ou seja: certas coisas da vida eu não vivo direito, pois transformo-as imediatamente em escrita. Escrever não deixa de ser uma espécie de morte, portanto, ou mesmo uma meia-vida, uma semivida.
A atividade é de todo anormal: escrever é não perdoar nunca, é não se arrepender jamais. Alegrem-se, pois, os normais, que não escrevem. Preferível levar a vida assim sem sobressaltos, na marteladazinha do dia-a-dia conhecido. Eu mesma adoraria não escrever, essa maldição.
Mas quando o mundo absurdo acusa um escritor do crime de escrever, reajo como o personagem de Albert Camus, no livro ``O Estrangeiro". A acusação não procede. Agarro-me ao espanto do réu injustamente acusado. Não procede. Me calo. Não me defendo, recuso-me a falar na mesma linguagem dos homens que me julgam.
Mas sabemos que não existe verdade absoluta, unilateral. Verdade é exercício individual, ainda que às vezes consiga semi-erguer a saia pudica da hipocrisia generalizada. Não se ofendam os hipócritas: as relações humanas não se sustentam sem a dose necessária desse cuspe.
Por fim, não é de caso pensado que se escreve. É mais grave que isso: é a partir da dupla ignorância. De um lado, ignora-se o mundo ao redor, como se ele não existisse. De outro, ignora-se o que se está produzindo, a coisa que se vai dizer, até o momento em que ela estiver dita.
Entretanto, escritor não ameaça ninguém. É um morta-fome sem dinheiro, único poder que importa. Tudo o mais é estilo. E aí, dependendo, negozinho fala mesmo... Quer dizer, eu soube há pouco tempo que ``negozinho", no Rio de Janeiro, é o tratamento carinhoso equivalente ao ``neguinho" baiano e paulista, para indicar alguém indefinido.
Gostei desse estilo carioca de dizer, displicente, como quem dá a cara à tapa. Sim, porque escritor dá a cara à tapa. Dependendo do estilo, então, não tem jeito, negozinho fala meerrmo... e não se arrepende jamais.

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