São Paulo, segunda-feira, 17 de julho de 1995
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Conheça o Brasil da Avon e do bispo

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quantas vezes não sonhamos que os alienígenas estavam invadindo o planeta? Quantas vezes não procuramos replicantes em detalhes tão pequenos como uma peruca acaju ou mesmo o gesto mecânico de aproximar o isqueiro da ponta do cigarro?
Enquanto vivíamos num mundo fantástico, o país real ia sendo tomado por gente simples e operosa e uma nova realidade se configurava diante de nós, sem que pudéssemos extrair dela importantes consequências estratégicas.
Deu no ``The New York Times": a Avon tem um exército de 487 mil vendedoras no país. Republicada no Brasil, a nota lembrava que isso é o dobro de nossas Forças Armadas.
Para cada soldado que se veste de verde, usa cabelo curto e pinta árvore de branco, há duas vendedoras da Avon. E se considerarmos, como Diane Ackerman (``The Natural History of the Senses", Vintage Books), que uma pessoa respira diariamente 23.040 vezes, podemos imaginar a influência que a Avon terá na vida de cada um de nós.
Outro dia, o correspondente do ``The Guardian" no Brasil telefonava assustado: o bispo Macedo comprara um templo do rock em Londres, o Academy de Brixton. O que podia fazer por ele? O bispo Macedo acabara de comprar aqui no Rio um prédio art nouveau que foi da Embaixada da China. Os cinemas vão tombando um a um. Não há muito o que fazer. Florescem os fundos de pensão e os fundos da eternidade. São eles que movem o mundo.
Meus esforços de pesquisa se concentram na Avon. Sherlock Holmes dizia que existem 75 perfumes que um especialista em crimes precisa conhecer. No caso brasileiro, nenhum detetive pode ignorar as fragrâncias da Avon, sob pena de ser ultrapassado por esses novos fatos.
Um observador ingênuo veria as consequências políticas desastrosas dessa presença nacional. Em cada crise, iria perguntar não apenas pela posição do Exército, mas também pela posição da Avon.
Mais equívoca seria a tentação de substituir um exército pelo outro e ocupar as fronteiras amazônicas com um cheiro próprio, inconfundível, em vez de construir quartéis em plena selva.
Infelizmente, estamos diante de situações bem mais complexas. A senhora Martha McClintock, por exemplo, descobriu que mulheres que vivem muito juntas acabam menstruando ao mesmo tempo. É o célebre efeito McClintock. Segundo ela, certas substâncias no suor feminino acabam produzindo a sincronia menstrual.
Pergunta: corremos ou não o risco de uma maciça sintonia menstrual no Brasil? E caso isso aconteça, quais seriam as consequências? Temos um plano de emergência?
Quando perguntaram a Marilyn Monroe o que vestia para dormir, ela respondeu: ``Chanel nº 5". O cheiro de Chanel nº 5 foi um dos primeiros a ser produzidos em laboratório. Marilyn marcava uma ruptura com Gabriela Cravo e Canela- o natural e o sintético.
Antes de Gabriela, havia a maçã do amor. Na Inglaterra medieval, as mulheres colocavam a maçã descascada sob as axilas até que fossem impregnadas com seu cheiro de suor. Os amantes cheiravam e adoravam.
A indústria soube instalar a paranóia do cheiro e substituir com êxito cada odor natural por dezenas de loções e extratos. O processo, como não podia deixar de ser, acabou se infiltrando entre as pernas através dos desodorantes vaginais.
Sandor Ferenczi talvez tenha se mexido no túmulo. Ele escreveu um livro sobre a teoria da genialidade, argumentando que os homens gostavam daquele leve cheiro de peixe porque estavam sempre querendo voltar para o oceano primordial do útero materno.
E agora? Tudo o que posso dizer para consolá-lo é que há um perfume chamado Pheromone, que custa centenas de dólares e trabalha com substâncias que os animais exalam quando estão no cio. A indústria sepultou os cheiros do corpo e agora os recupera em busca da sensualidade perdida.
Dizem que o cheiro na verdade é a memória líquida. Será necessário um século talvez para que um Marcel Proust brasileiro sinta o cheiro de Avon e reconstitua com rigor todo o trauma de uma época: as novelas noturnas, diálogos com música ao fundo, cinemas trepidando com hinos religiosos, o odor de Big Mac e batata frita entrando pelas frestas da janela.
No momento em que começo a desenhar essa pesquisa estratégica, ouço a campainha. Desço para o segundo andar, olho o quarto das crianças e, de relance no banheiro, vejo a escova e a pasta de dente.
Sigo descendo as escadas e penso qual mala seria boa para levar o essencial, se tivesse que levar o essencial. Correspondência, contas a pagar, encontros marcados -passa tudo rápido pelo cérebro.
São 487 mil operosas vendedoras e não uso desodorante. Mais cedo ou mais tarde acabaria descoberto. Abro a porta com cuidado e vejo um objeto negro à altura do meu ombro, fecho os olhos e penso que é melhor relaxar e cheirar.
Passam-se intermináveis frações de segundo. Nada sinto, exceto meu suor. Abro os olhos surpreso. A mulher com a blusa de mangas compridas agita a Bíblia e diz: ``Cristo salva". Apuro um pouco melhor meu olfato e sinto um leve perfume. Avon. Louvado seja. Visitas aos domingos e lembre-se: não fumo, prefiro maçãs.

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