São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 1995
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Jovem não deve entrar na onda `albanesa'

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Leio que Brizola vai fazer aliança com Lindbergh Farias contra as reformas. Velhos e moços unidos. E penso na UNE.
A UNE era uma palavra mágica. Ficava ali na praia do Flamengo (quem lembra ainda?), um prédio de arquitetura meio fascista, onde tinha funcionado um clube germânico tomado durante a guerra. A sigla UNE me evocava um punho cerrado de certezas, uma aventura na liberdade.
O jovem estava em alta nesse ano de 1963. Ainda não era apenas um alvo do consumo, ainda não havia virado esse ícone de uma liberdade vaga, paparicado pelo mercado de jeans. Tínhamos uma importância real no país. E isso não é um engano nostálgico.
Com a onda da modernidade (eu jurei não usar mais esta palavra), ou melhor, com o maremoto do consumo transnacional (epa!...) batendo às portas de nosso mundinho getulista, a política brasileira pré-64 tinha a perspectiva acadêmica dos quadros figurativos.
A explosão da galáxia social ainda não havia começado. Só era suspeitada pelas vanguardas literárias, mas não havia batido ainda na política.
Girava à nossa volta a arte européia do absurdo, a pop art americana, os ``beats" já tinham mostrado sua fossa ``on the road".
Na UNE, eu fui de uma ala mais independente que lutava contra a caretice esquemática do Partidão. Um dirigente do Comitê Central nos chamava a ``turma da vertigem". Fidel Castro, Che, Cienfuegos, todos lindos com 28 anos, tinham conquistado Cuba, com suas barbas de hippies armados. Era irresistível. O absoluto parecia conquistável.
Daí a luz que cobria o prédio da UNE com uma radiação de vida nova. Eu entrei na UNE fascinado com aqueles garotos que falavam pelos cantos, com rostos cheios de responsabilidade, camisas sem moda, calças de terno, sapatos sem forma (os jovens ainda não consumiam nada, usavam roupas dos pais).
Os primeiros Volks circulavam nas ruas vazias. (É terrível, mas já sou de época.) A política era poética, englobava arte, sexo, beleza, loucura. Muito mais que derrubar um governo, íamos mudar a vida. Mas o Partidão vigiava nossa ``vertigem".
Nosso dirigente da base era um judeu de meias brancas em tristes sapatos pretos, Jaime, aliás Marcos, aliás companheiro, que além de tudo tinha um nariz cor-de-rosa furadinho de cravos. Eu ficava vidrado no nariz dele e prestava pouca atenção quando ele reduzia tudo ao ``imperialismo norte-americano".
``Isso assim assim...?", perguntávamos. ``Qual é a contradição principal? Não é o imperialismo? Pois é...", respondia.
Tudo, mulher, negros, sexo, arte, tudo era culpa do imperialismo. ``Quando libertarmos o país, as mulheres serão livres", ``Fulano é viado? Culpa do imperialismo..."
Lembro-me da noite de 31 de março, quando um colega eufórico me abraçou: ``Vitória! Já ganhamos o imperialismo; agora só falta a burguesia nacional!". Senti um calafrio.
Horas depois, a UNE pegava fogo, ateado pelos fascistas. Vitória total, sem um ai da esquerda, sem luta, numa espantosa dessincronia com o tal de ``absoluto".
Fomos derrotados por um general que se definia como ``vaca fardada" (o general Mourão Filho disse ao vencer: ``Eu sou a vaca fardada!"). Fomos derrotados pelos elefantes de louça, pelos tristes jantares da classe média, pelos dedos rugosos em rosários, pelas faces burras dos fiéis das marchas da família, pelo homem-tronco Castello Branco que parecia um anão de jardim. Tudo que a gente mais odiava apareceu de repente, como um pesadelo.
Eles não tomaram o poder, propriamente. Era como se eles dissessem: ``A gente sempre esteve aqui, a gente sempre esteve em nossos tristes pijamas em nossos sofás art déco, sob nossos lustres de cristal, entre móveis `chippendale' do Catete. Vocês é que não nos viam..."
Nós, que nos achávamos o sal da terra, fomos vencidos pelas nossas tias velhas, num conluio vagabundo com os generais de pijama... No grande choque de 64, entendi com pavor (lembro-me da rua na tarde baldia) que a vida continuava e que ninguém ligava para meu sofrimento político. Entendi a morte. Amadureci anos em horas.
A grande dor nessa hora foi ver, pela primeira vez, o mundo das ``coisas". Não sei se me entende. De repente, no meio da rua, eu vi as pedras, os anúncios, os ônibus, as mercadorias de uma loja, os postes, o meio-fio, os pneus dos carros.
Era como se uma invasão das coisas duras do mundo houvesse começado, como um filme de terror. Eu, que vivera sempre pelas palavras, estava sendo humilhado pelo terrível mundo das arestas e dos tijolos de segurança, dos andaimes, das poças d'água, do Pão-de-Açúcar, dos rostos insensíveis dos transeuntes.
As coisas ficaram com uma nitidez insuportável. Nós não tínhamos coisas, só chavões. Perguntei ao triste comunista Marcos, aliás companheiro-dirigente: ``Nem uma pistola 32?"
Nada, nem uma 32. Nós não tínhamos armas. Nada. O rosto do judeu comuna de nariz cor-de-rosa parecia o de um palhaço tristíssimo. ``Precisamos rever nossas posições", gemeu em sua autocrítica, ``o imperialismo..."
Me deu uma ternura imensa pelo comuna triste. Mas vi que era impossível ganhar revoluções com líderes de nariz-cor-de-rosa e sapatos pretos com meias brancas.
Anos depois, eu o revi na clandestinidade, muito misterioso, com nariz novo, operado, camuflado. E vi naquele nariz artificial o prenúncio da ``pós-modernidade".
Hoje vejo com dolorosa luz que éramos muito menos ``agentes de uma mudança" do que pensávamos. O terrível é que talvez fôssemos os pretextos para um golpe de direita. Nós, que nos julgávamos estátuas heróicas de bronze, éramos mercadorias tão óbvias quanto as coisas que surgiam à nossa frente.
Fomos objetos de um processo sinistro e sem nome que se alimentava de nosso romantismo para brilhar sem luz, que precisava de nossa fé para ridicularizá-la.
O mundo se modificara e nós nem éramos as vítimas da armadilha; fomos o queijo da ratoeira. A vítima foi a sociedade toda.
Não pense, jovem radical que me lê (?) com desconfiada desatenção, que eu ``fui incendiário e hoje sou do corpo de bombeiros", como me diziam os velhos em 63. Não é isso. É que vejo que em 64 as ``coisas" do mercado do mundo se apropriaram do nosso ``não-querer" para poder se parir.
O mercado do mundo queria uma esquerda embriagada por palavras para justificar 64 e nos fazer credores de uma dívida externa bilionária.
A ``bolha maldita", a ``Coisa" precisava da explosão de nossos slogans abstratos para tomar o poder e instalar uma economia de supérfluos, para criar um bolo jamais repartido e fazer um torto ``milagre".
A banca internacional precisava emprestar dinheiro. O golpe de 64 foi feito para nos endividarmos (ou vocês acham que iam emprestar 60 bilhões de dólares para o Jango fazer a reforma agrária?). Nos aprisionaram para contrairmos a dívida externa em 64 e nos libertaram em 84 para pagá-la.
Hoje, o capitalismo de ``fluxos globais" sacralizou o domínio do volátil, do fátuo, num delirante videoclipe de indeterminações. Até o indeterminismo foi vulgarizado. A idéia de ``complexo" foi massificada e virou ``confusão".
Entendo que os jovens queiram resistir a essa mentira, a esse elogio do ``mercado invencível". Só que isso não se faz com a adesão a táticas reativas e ao pensamento pré-industrial.
Os jovens entraram numa onda reativa albanesa. Acham que só o simplismo é viril, que complexidade é frescura de pequeno-burguês. Só que não se luta contra o movente pelo imobilismo.
Hoje, os jovens deviam tecer sua esperança e seu programa levando em conta os detritos do mundo, respeitando as ``coisas" e não querendo ignorá-las. Devem lutar contra o indeterminismo careta, em busca das ricas sobredeterminações do real. Não sei se me entendem.
Mas alguém vai entender. É que eu fico preocupado quando vejo a cara de certeza absoluta de líderes da UNE. Esse é o melhor presente que posso dar aos mais jovens: minha alma vazia, quando vi as coisas invadindo a vida em 64, enquanto a UNE pegava fogo.

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