São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 1995
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Sobre a cultura midiática

ZELJKO LOPARIC

A grande tradição cultural do Ocidente está em decomposição. Esse diagnóstico, já antigo, foi enriquecido de novos sintomas. Constatou-se, no contexto da análise marxista, que a nossa cultura virou produto industrial e objeto de consumo de massa. A exploração teórica desse fenômeno, iniciada por W. Benjamin, está bem avançada.
Heidegger substituiu a questão do modo de produção e consumo por uma mais fundamental ainda, a do modo de existir da cultura. Ele chamou atenção para a cultura dos magazines ilustrados. Ainda se disse pouco sobre essa forma de existência da cultura e suas leis. Uma delas é a comercialização antecipada, frequente hoje também no Brasil.
A Volkswagen começou a vender o Pointer antes mesmo de ele estar disponível no mercado. Há alguns anos, um diário de São Paulo publicou trecho de um livro ainda no prelo, acompanhado de comentários elogiosos. O editor explicou-me que o texto publicado pertencia a um livro que ``já era um clássico". Recentemente, li uma matéria sobre um livro de filosofia não publicado, mas que era apresentado como obra que inauguraria a filosofia brasileira. Usa-se a técnica de publicidade antecipada, como a Volkswagen fez com o Pointer.
Com efeito, qual é o sentido desse tipo de promoção? Haveria clássicos inéditos? Revoluções intelectuais por antecipação? Não. O discurso editorial nos casos mencionados pertence a um outro campo semântico: o comercial. Trata-se o livro, ainda não impresso, como o livro do futuro, assim como o Pointer é apresentado como o carro do futuro. ``Já é um clássico" não se refere à eficácia cultural da obra no passado, mas à sua carreira projetada.
Além da metaforização propagandística, note-se o deslocamento temporal: o caráter de clássico da obra não remete mais à história. Na Antiguidade, uma obra só se tornava clássica muito tempo depois da morte do seu autor. Na nossa época, a mídia anuncia hoje quais obras e de que autores vivos terão amanhã o status de clássicos.
Tal projeção do futuro é feita sem levar em conta as avaliações das comunidades geradoras e guardiãs da vida cultural, às quais caberia, de acordo com a tradição, decidir sobre o seu lugar numa escala de valores. A linguagem usada é factográfica e trabalha, no essencial, com dois valores: bom e ruim. Na medida em que ela predomina, essas comunidades ficam privadas do principal instrumento de fazer prevalecer a sua autoridade intelectual: o discurso matizado e argumentativo.
Os elogios ou as críticas veiculados pela mídia têm a peculiaridade de só serem questionáveis eficazmente na própria mídia. Diante do público em geral, as resenhas das revistas especializadas pouco ou nada podem mudar na reputação midiática, boa ou má, de uma obra.
Além dos círculos culturais, é a própria tradição que fica destronada como instância crítica e substituída por um modo de avaliação baseado em respostas momentâneas da sensibilidade pública aos estímulos da mídia. Antes, os clássicos duravam muito e educavam. Hoje, duram pouco, mas prometem ser muito excitantes (``irritantes", como diria Sade).
A autoridade das comunidades passa a ser exercida por formadores de opinião sobre os valores culturais. São pessoas que frequentemente provêm de meios profissionais e são as únicas chamadas para falarem de determinados assuntos. Quanto mais solicitadas, maior o seu peso midiático e menor o compromisso profissional. Isso faz com que os comunicadores firmados ousem emitir juízos sobre temas completamente alheios ao seu campo de competência. Vi poetas midiáticos discursando copiosamente sobre quem é quem na filosofia mundial de hoje.
Se a venda da cultura por publicidade antecipada fere a lógica da vida cultural tradicional, ele se afina, e bem, com o modo de funcionamento psíquico que Freud chamou de ``processo primário": a metaforização e o deslocamento semânticos.
Ao tornar-se midiática, a nossa mentalidade coletiva regrediu e passou a operar segundo as leis características do inconsciente: deixou de funcionar como um ``processo secundário", governado pelos teses de realidade e pelo exame crítico, devidamente institucionalizados, e ficou condicionada a reagir segundo o princípio do prazer (é engolir ou cuspir) os objetos provenientes do meio midiático.
A cultura brasileira está se tornando, enfim, pós-moderna e cínica: ela assumiu a condição de artigo a ser comercializado em massa, segundo as regras de estimulação das reações primárias (sim, não) e as do mercado. Mercado que condiciona o público ao comportamento primário, não tendo, ele mesmo, nada de primário, controlado que é pelos cálculos dos que gozam de acesso privilegiado aos meios de comunicação.

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