São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 1995
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Quem sabe?

ANDRÉ LARA RESENDE

Se é novo, é bom. Em dúvida, observe como, em toda e qualquer área, procura-se tachar o campo oposto de reacionário, apropriando-se, portanto, da posição de progressista. Se reacionário é automaticamente errado, tudo que é novo é necessariamente bom. É claro que, assim postulado, poucos se associariam sem ressalvas ao progressismo. Existe uma certa ambiguidade providencial em relação aos conceitos de modernidade e de progresso. Ambiguidade que se aprofunda nos conceitos de pós-modernismo, neo-reacionarismo e outras já antigas neo-expressões.
É impossível precisar quando começa a modernidade. Talvez a partir do desenvolvimento da física com Galileu: a ciência deixa de ser uma descrição de experiências e passa a ser concebida como elaboração de modelos abstratos. Talvez seja preciso ir um pouco mais para trás: a condição da ciência moderna foi a emancipação da razão secular do jugo da revelação religiosa. Quem sabe?
A associação entre modernidade e a perda da noção de transcendência é, entretanto, inquestionável. Ao compreender que o universo se comporta de acordo com algumas equações imutáveis, retirou-se a transcendência da explicação do particular. Sem a possibilidade de milagres, da intervenção divina ou diabólica no curso dos eventos, o mundo da ciência moderna perdeu a alma. Durante algum tempo pretendeu-se que seria possível manter a fé ao abrigo da invasão do racionalismo. Uma série de expedientes lógicos foram utilizados para deixá-la quieta, num cantinho, onde ela não deveria incomodar.
O mais violento ataque à pretensão de compatibilizar a fé e a racionalidade moderna foi desferido por Nietzsche: o mundo não faz sentido e não há realidade por trás dele; não há distinção entre o bem e o mal. Sua resposta para esse desespero era a loucura. Dificilmente uma solução. Continuamos então tentando simultaneamente afirmar nossa modernidade e escapar dos seus efeitos; convencer-nos de que é possível reencontrar sentido ao largo do patrimônio religioso devastado pela modernidade. Indiferentes, apesar de uma ponta de insatisfação consigo mesma, a modernidade avança a toda velocidade.
O tema é fascinante, e o espaço é curto. Leszeck Kolakowski, em extraordinário ensaio, sustenta que é bobagem tomar partido contra ou a favor da modernidade. Não tem sentido tentar parar o progresso da ciência e da razão. Tanto a modernidade como a antimodernidade podem tomar formas bárbaras e anti-humanas. Uma característica da modernidade, entretanto, lhe parece especialmente perigosa: o fim dos tabus. Não é possível distinguir maus de bons tabus. Ao se derrubar os primeiros, arrasta-se os segundos.
A maioria dos tabus sexuais foram derrotados. Preservados, por enquanto, o incesto e a pedofilia. O respeito pelos corpos dos mortos parece candidato a extinção. Embora o transplante salve vidas, Kolakowski diz ter dificuldade em discordar dos que vêem com horror um mundo onde os corpos são meros depósitos de peças de reposição para os vivos. Talvez o respeito pelos mortos e o respeito pelos vivos -e pela própria vida- sejam inseparáveis. Ou será apenas uma ponta de reacionarismo melancólico?

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