São Paulo, sexta-feira, 21 de julho de 1995
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É no fogão que se nutre a intuição

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como é que alguém poderia aprender a cozinhar na São Paulo de meados dos anos cinquenta? E olha que foi ontem!
As meninas de vestido rodado tomara-que-caia, bolero, de algodão amarelinho Bangu. Sapatos chispa-de-fogo, óculos gatinho.
Grace Kelly virava princesa, Elizabeth Taylor se casava já pela segunda vez. Os filmes eram musicais com Jane Powell, Kathryn Grayson, Howard Keel, horríveis. E esse mundo todo sendo sustentado por incríveis pés palito.
Bem, o modo mais fácil de aprender a cozinhar seria ir para a cozinha e aprender a fazer berinjela recheada com Iracema, feijão grosso com Braulina, empadas de galinha com a mãe, alcachofras recheadas com a vizinha italiana.
É, teria sido o caminho mais inteligente e sensato. Batalhando na cozinha é que se aprende a base, que se adquire o costume, que se nutre a intuição.
Mas não. Há aqueles que pulam etapas e que logo gritam: "Meu reino por um livro de cozinha!".
Fiz parte dessa turma que só aprendia alguma coisa se tivesse em letra de fôrma, gravada no papel.
Naquele tempo, tínhamos o livro "Rosamaria", em três volumes, bom, mas que exigia do leitor um certo "background" de técnicas culinárias; e alguns outros, coletâneas sem personalidade e credibilidade. O "Maria Theresa Costa", interessante, estava esgotado. Só vim a conhecê-lo mais tarde.
O que restava às noivas de 1956, quase todas de colégio de freiras? Nada.
Havia uma aula de economia doméstica na qual fazíamos um pano de amostra, que não passava de um lenço que íamos bordando e rebordando até ficar um trapo imundo.
Comida era assunto tabu, pois as freiras nem comer em público podiam. Uma vez, num piquenique, flagrei uma, toda vermelhinha, comendo uma ameixa tirada do pé, escondendo a boca com a mão em concha.
Bem, restava à noiva ou recém-casada a revista semanal "O Cruzeiro", com sua página culinária de Helena Sangirardi, uma foto e muitas receitas.
As meninas mais vorazes podiam comprar em algumas bancas as deslumbrantes revistas americanas "Ladies' Home Journal" e a "Good Housekeeping". Eram inteiramente voltadas para a domesticidade, para a educação da mulher de subúrbio, para o "easy way of life", a vida ao ar livre e o entretenimento dos amigos.
Rompera-se a parede entre a sala de visitas, de jantar e a cozinha. Era tudo um "family room". As mulheres de avental e cabelos clareados com Clairol, traziam um pirex fumegante, enquanto o marido lia o jornal e as crianças brincavam pelo chão. O marido só começou a tirar a mesa do jantar nos 80, mas nos 50 já punha avental para fazer churrasco ao ar livre.
Deve ter sido a época em que a aviação comercial criou mais asas e os americanos tiveram a oportunidade e a curiosidade de ver este vasto mundo.
A Polinésia ganhou o troféu de mais exótica. Nós, brasileiras, leitoras inocentes, íamos atrás, colar de flores no pescoço, amarradas em saris coloridos. Enchíamos melancias com saladas de frutas, abóboras com camarões, tomates com creme de milho. Quando recebíamos alguém, não mais usávamos pratos, mas melões e cocos rachados ao meio.
E a lata de presuntada? Herança da guerra, que tinha o nome de Spam? Quem se lembra da presuntada?
As multinacionais de alimentação distribuíam folhetos, livrinhos, criavam personagens escritoras de receitas, como Betty Crocker, que no correr dos anos mudava de cara mas era sempre a Betty Crocker, a Dorian Gray da alimentação.
A grande moda era Jello, a gelatina verde que servia também para pratos salgados. Glob, glob, glob! Mousses, gelatinas, geléias e "marshmellows"!
O prato único facilitava a vida, era a ubíqua "casserole". A mais presente, a de atum, brócolis, queijo e "croutons". Arre!
Como as revistas eram em inglês e os títulos não correspondiam ao conteúdo e a ignorância das cozinheiras não tinha fim, executar um prato era como um ritual de bruxaria, do qual não se sabia os resultados.
Tenho até hoje um recorte de papel brilhante de uma receita que fiz, "Sweet Delight", sem ter a menor idéia de que diabo disso era aquilo. Ao lado, com letra do meu pai, a principal cobaia, o esclarecimento: pudim de pão.

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