São Paulo, sábado, 22 de julho de 1995
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Justiça brasileira discute a prisão do depositário infiel

EUNICE NUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma discussão tem sido frequente no mundo jurídico nos últimos tempos: a legalidade ou não da prisão civil do depositário infiel (pessoa que fica responsável pela guarda e conservação de um bem, mas não o apresenta quando solicitado).
A polêmica instalou-se em 1992, quando entraram em vigor no Brasil dois tratados internacionais: o Pacto de San José e o Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos. Mas até hoje o Judiciário não tem uma posição consolidada a respeito do assunto.
O Pacto de San José, que dispõe sobre direitos individuais, diz que ``ninguém será preso pelo não pagamento de dívidas".
O Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos estabelece que ``ninguém será preso pelo simples fato de não poder cumprir um contrato".
Mas a Constituição prevê expressamente a prisão civil nos casos de depositário infiel e de falta de pagamento de obrigação alimentícia.
Ao mesmo tempo, diz também que ``os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes... dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte".
Como os tratados internacionais ratificados pelo Brasil adquirem força de lei interna, a questão que se coloca é: continua válida a prisão civil do depositário infiel ou os tratados revogaram o disposto na Constituição?
A prisão civil não é punitiva. É uma técnica processual de coerção, para forçar o depositário a entregar o bem que ficou sob sua guarda ou, se não for possível, o equivalente em dinheiro.
Nas execuções fiscais (que têm por objeto a cobrança de tributos), por exemplo, tem-se demonstrado muito eficaz.
``Em 90% dos casos, antes mesmo de o juiz expedir o mandado de prisão, o depositário apresenta os bens desaparecidos ou o equivalente em dinheiro", informa o juiz Odmir Fernandes, coordenador do Setor de Execuções Fiscais da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo.
Fernandes entende que, no caso das execuções fiscais, não se aplicam os tratados internacionais. ``Não se trata de dívida -o devedor já teve os bens penhorados pela Justiça e torna-se seu depositário até o leilão-, nem de contrato, porque ele é um depositário voluntário -tem interesse em manter o bem em funcionamento na empresa", sustenta.
Já a não entrega da coisa na alienação fiduciária (garantia do financiamento na compra parcelada de um bem), segundo Fernandes, não está sujeita à prisão civil.
``Há um depósito na alienação fiduciária, mas é contratual. Portanto fica ao alcance do tratado que proíbe a prisão pelo não cumprimento do contrato", diz.
``Em nenhum caso, exceto no de dívida de pensão alimentícia, é legal a prisão civil. Todos os outros são decorrentes de dívida ou contrato, logo sujeitam-se ou ao Pacto de San José ou ao Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos", rebate Antonio Carlos Malheiros, juiz do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo.
Para Malheiros, os tratados internacionais ratificados pelo Brasil têm força de dispositivo constitucional. Logo, segundo ele, revogam o texto da Constituição que permite a prisão civil do depositário infiel.
Já o juiz criminal Luiz Flávio Gomes considera ilegal a prisão civil do depositário infiel, com base no princípio da proporcionalidade da pena.
``É desproporcional a privação da liberdade humana para tutelar o patrimônio vinculado a uma dívida. O devedor não é um criminoso. Embora a prisão civil tenha finalidade coercitiva, afeta o bem jurídico constitucional que é a liberdade", sustenta.
No entanto, Gomes concorda com Malheiros na caracterização do depositário infiel. ``Na origem de tudo -o depósito- há sempre uma obrigação patrimonial: dívida ou contrato", afirma.
Mas discorda quanto à revogação da Constituição pelos tratados internacionais. ``Eles têm força de lei federal, que não tem poder para revogar dispositivo constitucional. Por esse ângulo, a prisão civil do depositário infiel é válida", diz.

Prisões decretadas
Os juízes do Setor de Execuções Fiscais da Fazenda Pública da Comarca de São Paulo decretaram, nos últimos 12 meses, cerca de 2.000 prisões de depositários infiéis em execuções fiscais de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) declarado e não pago (inadimplência fiscal, não sonegação).
``Só na capital, são 200 mil processos de execução de dívidas de ICMS, envolvendo cerca de R$ 5 bilhões, valor equivalente a quatro meses de arrecadação do Estado de São Paulo", diz o juiz Fernandes.
A execução é a fase final do processo. O executado ou paga ou oferece bens à penhora. Se não faz nenhum dos dois, o oficial de Justiça vai à empresa e penhora os bens necessários.
Nesse momento, a Justiça nomeia o depositário desses bens até que eles sejam leiloados. Normalmente, o depositário é o próprio devedor. Em muitos casos, na hora do leilão, a Justiça constata que os bens sumiram. É aí que entra a decretação da prisão.

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