São Paulo, sábado, 22 de julho de 1995
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Pensamento luta com ligações perigosas

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

D uas paixões vividas em nossa complicada época ainda vão dar muito trabalho aos historiadores. Bons foram os tempos em que a vida das idéias e a vida particular das pessoas de um poder de criação fora do comum corriam lado a lado, sem que as paixões tirassem a limpidez das idéias.
A vida pessoal podia transcorrer de forma indisciplinada, desregrada, mas a outra é que valia, que ia definir ``a obra" realizada.
Erros sempre foram cometidos por todos, mas as pessoas mentalmente eleitas, as que pensavam por nós, viviam seus dramas pessoais em tom menor, enquanto renovavam os conceitos que nos orientam.
Artistas podiam sair do sério, mas os filósofos e pensadores eram os adultos da raça, os responsáveis. Kant não nos deixou aventuras e sim o Imperativo Categórico e Hegel, enquanto aguentava uma vida banal, firmava para nós a fascinante aventura do Espírito tratando de se encarnar na História.
Mas aumentou muito, em nossos dias, a confusão entre o mundo das idéias e o das paixões, pensei eu, enquanto folheava o livro do filósofo Louis Althusser intitulado ``Lávenir Dure Longtemps, Suivi de Les Faits", ou seja, ``O Porvir Dura Muito Tempo, Seguido de Os Fatos".
Althusser, que morreu em 1990, cometeu em 1980 o crime de estrangular sua mulher Helena. Famoso como filósofo e como profundo conhecedor de Marx, Althusser sempre tinha preocupado os amigos com a precariedade de sua saúde mental, que o mergulhava em graves crises. Mas nunca ocorreu a ninguém que fosse desembocar no homicídio.
É bem verdade que nas suas confissões Althusser descreve a morte de Helena, por ele esganada durante ``uma massagem no pescoço", como casual, involuntária, ou quase.
Mas a descrição que ele próprio faz do estrangulamento é um horror e não consegue afastar de nós a idéia de crime. O livro tem algo de repugnante, que nos deixa em dúvida. E quando, muito depois do crime, Althusser, sempre em busca de uma explicação, dá ouvidos a quem lhe diz que, na verdade, ao matar Helena, que lhe era tão necessária, ele estava apenas matando seu próprio psicanalista, o horror assume um lado quase burlesco, cômico. O que não ajuda o leitor a ter pena do criminoso.
Althusser, que sem dúvida viveu anos sofrendo todos os eletrochoques e horrores que eram até pouco tempo o quinhão dos doentes mentais, foi finalmente impronunciado pela Justiça da França. Não era responsável ao cometer o crime.
Passou o resto da vida preso, mas em hospícios e casas de saúde. E escrevendo, escrevendo, aprofundando, entre outras coisas, o chamado corte epistemológico na obra de Karl Marx. Mas temo que seus aprofundados estudos não resultem em nenhum legado maior para a humanidade. Althusser não nos deixou uma filosofia. O que esperamos é que não tenha nos deixado simplesmente um assassinato.

Hannah e Martin
Outro momento do nosso tempo em que o particular invade de forma insólita e violenta o mundo das idéias é o do amor que ligou a fascinante Hannah Arendt ao filósofo Martin Heidegger.
O caderno Mais! se ocupou recentemente do assunto, sem, no entanto, sublinhar seu lado inexplicável, que é o seguinte: como pôde Hannah, judia orgulhosa de suas origens e cuja vida inteira foi uma luta pura e determinada contra o nazismo, compreender, para não dizer absolver, o homem que foi o maior filósofo dos nossos tempos e que no entanto se deixou seduzir pela pregação hitlerista?
O amor de Hannah Arendt e de Martin Heidegger teve forma discreta mas foi sem dúvida intenso em si mesmo.
Aliás, é um amor que continua discreto até hoje, depois da morte dos amantes. A correspondência dos dois continua lacrada, trancada a sete chaves num arquivo da Alemanha, e só quando essas cartas caírem em domínio público chegaremos talvez a perceber como pôde haver entendimento e afeto entre homem e mulher onde não podia haver entendimento entre filósofos separados não por alguma idéia abstrata e sim por campos de concentração e fornos crematórios.
Heidegger certamente nunca foi nazista de carteirinha e de gritar ``heil Hitler" no meio da rua. Mas ratificou o ideário nazista, como pensador e, ai de nós, jamais o renegou, nem depois de 1945, quando o mundo inteiro tomava conhecimento do horror nazista em fotos, em filmes e ouvindo o depoimento dos sobreviventes.
Em meio ao gigantesco acervo de estudos e livros que existem sobre Heidegger, destaca-se o de George Steiner, exatamente por não ser Steiner um filósofo profissional e sim o grande ``especialista em idéias gerais" de nossa época.
Seu ``Heidegger" é a apresentação do maior pensador do nosso tempo, mas que nem por isso foi imune à pior doença espiritual da época. Heidegger não se dedicou a enriquecer o nazismo com qualquer idéia sua, mas aviltou seu ideário por jamais haver banido dele o nazismo.
Judeu, como Hannah, Steiner pinta do filósofo um excelente retrato, que a própria Hannah poderia assinar, mas exclama, ao concluir o livro, que mesmo os momentos mais nazistas de Heidegger poderiam ter sido redimidos, caso tivesse havido um ``mea culpa" qualquer, posterior. Mas não houve nada.
Diz Steiner: ``Repugnantes como foram, os gestos e declarações de Heidegger em 1933-34 são aceitáveis. Seu completo silêncio depois de 1945 sobre o hitlerismo e o holocausto são praticamente intoleráveis". Heidegger podia ter, honestamente, pedido perdão pelo erro cometido.
Não estou querendo apelar para uma graçola quando me lembro de Ataulfo Alves: ``Perdão foi feito pra gente pedir". Heidegger não pediu nada. Não curvou a cabeça.
E Hannah? Disse, alguma vez, alguma coisa contra o amante? Escrevendo para sua amiga Mary McCarthy em 1954, Hannah, que jamais diz que foi amante de Heidegger, traça na carta um panorama geral da filosofia para finalizar: ``Entre os filósofos modernos, acho que Heidegger é o mais interessante, porque tenta pensar Nietzsche em todas as suas consequências etc. etc." e por aí vai.
Não diz nada, não faz a menor ressalva a propósito das idéias nazistas de Heidegger, logo ela, a profunda estudiosa de ``As Origens do Totalitarismo" e do caso Eichmann. Um mistério.
Não quero desrespeitar esse drama, que de fato me comove, esse amor dilacerado entre idéias e ternura, mas arrisco dizer que se Hannah tivesse estrangulado Martin teria de minha parte uma compreensão que não consigo estender a Althusser.

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