São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Rumo à luz

LUCIO COSTA

Quando, por instigação de Rodrigo M. F. de Andrade, comecei a estudar seriamente a escultura e a arquitetura de Antonio Francisco Lisboa -o Aleijadinho-, duas coisas me impressionaram. Primeiro, a coexistência da força com o refinamento, que se observa em grau maior ou menor em toda a sua obra e decorre da contradição fundamental do seu temperamento arrebatado e passional com a graça rebuscada do estilo da época, contradição que, embora contida, extravasa a cada passo em bruscos rompantes plásticos, que são a marca inconfundível do seu gênio; segundo, as afinidades dela com a arte seiscentista alemã da área compreendida entre o Danúbio e os Alpes.
Assim, pouco depois do fim da guerra, aventurei-me Baviera adentro com família e tudo, apesar do carimbo de NO FACILITIES com que me brindaram as autoridades aliadas sediadas em Berna.
Desejava conhecer de perto as igrejas onde a arte barroco-rococó, seguindo embora caminho oposto, havia sabido criar, tal como ocorrera na Idade Média com o gótico, atmosfera e ambientação do mais alto teor místico -da imensa e envolvente Ottobeuren à graça luminosa de Wies.
Dentre todas, porém, atraía-me a igreja beneditina de Rott, à margem do Inn, porquanto observara, no coroamento do seu retábulo, afinidades de partido com o de São Francisco de Ouro Preto.
Mas a viagem, com aquele ferrete no passaporte, foi na verdade penosa. Dificuldades de gasolina: a salvação, certa vez, foi a fábrica de sapatos Salamandra toda acesa, pois trabalhavam em três turnos, noite e dia -era o milagre da recuperação econômica já em processo de elaboração; dificuldade de alojamento: em Landsberg, cidade-prisão, pernoitamos numa espelunca, enfumaçada e barulhenta, entulhada de soldadesca.
Apesar de tudo, a solidariedade familiar não esmoreceu. Em dado momento, a "autobahn" terminou, cortada a pique; tivemos que tomar um atalho longo e poeirento, até que, ao escurecer, surgiu finalmente a igreja à direita, meio isolada na paisagem.
Só então pressenti o malogro -estava, de fato, fechada. Saltei mesmo assim, caminhando desolado em direção à entrada; quando me aproximava, a porta, como por encanto, se abriu.
A respiração suspensa, penetro na igreja sombria, percebendo ao fundo, na penumbra, o vulto do retábulo. Dou alguns passos, as luzes se acendem, e, quando chego diante da capela-mor e, com o pensamento no Aleijadinho, encaro a figuração da Santíssima Trindade, ecoam pela nave os acordes de um cantochão.
Era sábado, o coro iniciava o ensaio para a missa da manhã.

Texto Anterior: Kodakchrome
Próximo Texto: Os precursores
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.