São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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Visão do Rio

LUCIO COSTA

Só tomei conhecimento do Rio de Janeiro aos 14 anos de idade. É que, nascido fora e trazido com poucos meses, meus pais retornaram em 1910 -Inglaterra, França e Suíça-, e lá ficamos até fins de 1916. Assim, a volta definitiva à cidade foi para mim uma revelação: as montanhas diferentes, a mata, o casario, o céu perto, o mar. Então, vista de frente nas ressacas, antes do aterro, a ``arrebentação" -esse imemorial encontro da onda com a praia- era espetáculo de prender em suspenso a respiração. A onda começava longe, sozinha, apenas insinuada, indecisa; aos poucos se definia, ia crescendo e sempre maior vinha vindo, como que tomando fôlego, até que, reluzente e coroada por uma crina de espuma, se dobrava e rebentava com estrondo numa explosão de brancura. Aí, célere, a água se derramava e espraiava lavando docemente a areia até se extinguir.
A nossa casa tinha quintal dando para o morro, era o 62, depois 80, Araujo Gondim, rua onde também morava Roberto Burle Marx. Tiveram o mau gosto de trocar o nome do doutor pelo do general, meu tio. A rua Anchieta levava diretamente à praia, onde agora está o hotel, e à parada do bonde. Lá moravam os Tenbrink -a loura e bela Leocádia na janela- e, um pouco além, os Ludolf. Era costume levar os amigos ao poste, onde se conversava até a condução chegar. Guardo a lembrança, numa dessas esperas, da serena figura de um jovem oficial, amigo de meus pais, de manso e bonito olhar -Djalma Dutra. Fez parte da Coluna Prestes e, por lá, morreu.
Recém-chegado, a primeira viagem de bonde com minha mãe a Laranjeiras, onde moravam meus tios e padrinhos, Noca e Thaumaturgo de Azevedo, também me marcou. Havia palmeiras na rua da Passagem e baldeação no Largo do Machado, praça arborizada, com a estátua de Caxias e, aos fundos, a imponente igreja da Glória, com os enormes fustes das suas colunas jônicas; depois, ao longo do caminho, casas no centro de amplos jardins, protegidos por altas grades de ferro, com acácias ``chuveiro de ouro" nos portões. O ar luminoso, o cheiro forte dos jasmins nos caramanchões, o riso alto das primas, tudo era novo para mim.
Num álbum que já sumiu, fazia desenhos. Certa tarde, na praia de Botafogo, esquina da Marquês de Olinda, passei horas em enlevado convívio com uma graciosa francesa de mármore de Carrara, intitulada Crepúsculo, que ainda lá está. Mas também experimentei constrangimentos: no morro da Urca, fui preso e conduzido à delegacia do Mourisco, porque, em plena guerra -a Primeira-, desenhava os fortes da Laje, de Santa Cruz e São João, na entrada da barra.
Assim era o Rio de Janeiro quando o conheci.

Os textos reproduzidos nesta página foram extraídos do livro ``Lucio Costa - Registro de Uma Vivência"

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