São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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A vibração que desperta nosso jeito desencantado

LUCIO COSTA

Dos tempos mais remotos até o século 19, a arte de construir -por mais diversos que possam ter sido os seus processos, e embora passando das formas mais rudimentares às mais requintadas- serviu-se invariavelmente dos mesmos elementos, repetindo, com regularidade de pêndulo, os mesmos gestos: o canteiro que lavra a sua pedra, o oleiro que molda o seu tijolo, o pedreiro que, um a um, convenientemente, os empilha. As corporações e famílias transmitiam, de pai a filho, os segredos e as minúcias da técnica, sempre circunscrita às possibilidades do material empregado e à habilidade do artífice, por mais alado que possa ter sido o engenho.
A máquina -com a grande indústria- veio, porém, perturbar a cadência desse ritmo imemorial, tornando a princípio possível, já agora, sem rodeios, o alargamento do círculo fictício em que, como bons perus cheios de dignidade, ainda hoje nos julgamos aprisionados. Assim, a crise da arquitetura contemporânea, como a que se observa em outros terrenos, é o efeito de uma causa comum: o advento da máquina. É pois natural que, resultando de premissas tão diversas, ela seja diferente, quanto ao sentido e à forma, de todas aquelas que precederam, o que não a impede de se guiar -naquilo que elas têm de permanente- pelos mesmos princípios e pelas mesmas leis.
As classificações apressadas e estanques que pretendem ver nessa metamorfose, naturalmente difícil, irremediável conflito entre passado e futuro, são destituídas de qualquer significado real. Se ainda não é fácil, porém, a espíritos menos avisados apreender, na arquitetura, o verdadeiro sentido dessa transformação a que não poderemos fugir, a evolução dos meios de transporte, impelida pela mesma causa, mostra toda a sua significação, de maneira clara e sem sofismas, nos resultados surpreendentes a que chegou, muito embora já nada disso nos espante, tão familiarizados estamos com essa foram corriqueira de "milagre".
Convém, todavia, insistir, não pelo fato em si -cuja importância é evidentemente relativa-, mas pelo extraordinário alcance humano que encerra. Desde o dia memorável em que o homem conseguiu domar a primeira besta, até o dia -igualmente memorável- em que se conseguiu locomover com a simples ajuda do próprio engenho, a arquitetura dos carros e barcos, embora variasse, passando da mais tosca e incômoda à mais elegante e confortável, conservou-se subordinada ao argumento de possibilidades limitadas, embora convincente, do chicote e aos favores incertos da brisa.
No entanto, em menos de cem anos de trabalho, a máquina nos trouxe das primeiras tentativas, ainda presas à idéia secular do animal e da vela, aos espécimes atuais já completamente libertos de qualquer saudosismo e aos quais a nossa vista prontamente se habitua e identifica -ainda que seja de bom-tom, nestes assuntos, certa atitude de afetada displicência.
O nosso interesse -como arquitetos- pela lição dos meios de transporte, a teimosa insistência com que nos voltamos para esse exemplo, é porque trata de criações onde a nova técnica, encarando de frente o problema, e sem qualquer espécie de compromissos, disse a sua palavra desconhecida, desempenhando-se da tarefa com simplicidade, clareza, elegância e economia.
A arquitetura terá que passar pela mesma prova. Ela nos leva, é verdade, além -é preciso não confundir- da simples beleza que resulta de um problema tecnicamente resolvido; esta é, porém, a base em que se tem de firmar, invariavelmente, como ponto de partida.
De todas as artes é, todavia, a arquitetura -em razão do sentido eminentemente utilitário e social que ela tem-, a única que, mesmo naqueles períodos de afrouxamento, não se pode permitir, senão de forma muito particular, impulsos individualísticos. Personalidade, em tal matéria, se não propriamente um defeito, deixa, em todo caso, de ser uma recomendação.
Preenchidas as exigências de ordem social, técnica e prática a que necessariamente se tem de cingir, as oportunidades de evasão apresentam-se bastante restritas; e se, em determinadas épocas, certos arquitetos de gênio revelam-se aos contemporâneos desconcertantemente originais (Brunellesco no começo do século 15, atualmente Le Corbusier), isto apenas significa que neles se concentram, em um dado instante preciso, cristalizando-se de maneira clara e definitiva em suas obras, as possibilidades, até então sem rumo, de uma nova arquitetura.
Daí, não se infere que, tendo apenas talento, possa se repetir a façanha: a tarefa destes, como a nossa -que não temos nem um nem outro-, limita-se a adaptá-las às imposições de uma realidade que sempre se transforma, respeitando, porém, a trilha que a mediunidade dos precursores revelou.
Ainda existe, no entanto, presentemente, completo desacordo entre a arte, no sentido acadêmico, e a técnica: a tenacidade, a dedicação, a intransigente boa-fé com que tantos arquitetos -moços e velhos- se empenham às cegas por adaptar, num impossível equilíbrio, a arquitetura que lhes foi ensinada às necessidades da vida de hoje e possibilidades dos atuais processos construtivos causa pena; chega mesmo a comover o cuidado, a prudência pudica, os prodígios de engenho empregados para preservar, no triste contato da realidade, a suposta reputação da donzela arquitetura. Um verdadeiro reduto de batalhadores apaixonados e destemerosos formou-se em torno à cidadela sagrada e, penacho ao vento, pretende defender, contra a sanha bárbara da nova técnica, a pureza sem mácula da deusa inatingível.
Todo esse augusto alarido resulta, porém, de um equívoco inicial: aquilo que os senhores acadêmicos -iludidos na própria fé- pretendem conservar como a deusa em pessoa não passa de uma sombra, um simulacro; nada tem a ver com o original, do qual é apenas o arremedo em cera. Ela ainda possui aquilo que os senhores acadêmicos já perderam e continua a sua eterna e comovente aventura. Mais tarde, enternecidos, os bons doutores passarão uma esponja no passado e aceitarão, como legítima herdeira, esta que já é uma garota bem esperta, "de cara lavada e perna fina".
É pueril o receio de uma tecnocracia, não se trata do monstro causador de tantas insônias em cabeças ilustres, mas de animal perfeitamente domesticável, destinado a se transformar no mais inofensivo dos bichos caseiros. Especialmente no que diz respeito ao nosso país, onde tudo ainda está praticamente por fazer -e tanta coisa por desmanchar-, e tudo fazemos mais ou menos de ouvido, empiricamente, profligar e enxotar a técnica com receio de uma futura e problemática hipertrofia, parece-nos, na verdade, pecar por excesso de zelo. Que venha e se alastre, despertando, com a sua aspereza e vibração, este nosso jeito desencantado e lerdo, porquanto a maior parte -apesar do ar pensativo que tem- não pensa, é mesmo, em coisa alguma.
Seja como for, não sendo ela um fim, mas, simplesmente, o meio de alcançá-lo, não lhe cabe a culpa se os benefícios porventura obtidos nem sempre têm correspondido aos prejuízos causados, mas àqueles que a têm nas mãos. E, neste particular, o exemplo dos EUA -onde, num respeitoso tributo à Arte, as estruturas mais puras deste mundo são religiosamente recobertas, de cima a baixo, por simulacros de todos os detritos do passado- é típico.
Enquanto os engenheiros americanos elevam a uma altura nunca dantes atingida as impressionantes afirmações metálicas da nova técnica, os arquitetos americanos -vestindo as mesmas roupas, usando os mesmos cabelos, sorrisos e chapéus, porém desgostosos com o passado pouco monumental que os antepassados legaram e sem nada compreenderem do instante excepcional que estamos vivendo- embarcam para a Europa, onde tranquilamente se abastecem das mais falsas e incríveis estilizações modernas, dos mais variados e estranhos documentos arqueológicos, para grudá-los -com o melhor cimento- aos arcabouços impassíveis, conferindo-lhes assim a desejada dose de "dignidade".
No entanto, os "velhos" europeus, fartos de uma herança que os oprime, caminham para a frente, fazendo vida nova à própria custa, aproveitando as possibilidades do material e da prodigiosa técnica que os "jovens" americanos não souberam utilizar.
Assim, com 20 séculos de intervalo, a história se repete. Os romanos -admiráveis engenheiros-, servindo-se de alvenaria e concreto, ergueram, graças aos arcos e abóbadas, estruturas surpreendentes: não perceberam que a dois passos estava a arquitetura; apelaram para a Grécia decadente, revestindo a nudez sadia dos seus monumentos com uma crosta de colunas e platibandas de mármore e travertino -vestígios de um sistema construtivo oposto. E foram precisamente os gregos, em Bizâncio -Santa Sofia-, que aproveitaram, tirando-lhe todo o partido da extraordinária beleza, a nova técnica.
Aliás, existem outras curiosas afinidades entre americanos e romanos, esses dois povos tão afastados no tempo: a coragem de empreender, a arte de organizar, a ciência de administrar; a variedade das raças; a opulência dos centros cívicos; os estádios e certa ferocidade esportiva; o pragmatismo; o mecenismo; o gosto da popularidade, a mania das recepções triunfais e, até mesmo, o próprio jeitão dos senadores -tudo os aproxima. Tudo que o romano tocava, logo tomava ares romanos; quase todos que atravessam o continente saem carimbados: "EUA".
A nova técnica reclama a revisão dos valores plásticos tradicionais. O que a caracteriza e, de certo modo, comanda a transformação radical de todos os antigos processos de construção, é a ossatura independente. Tradicionalmente, as paredes, de cima a baixo do edifício, cada vez mais espessas até se esparramarem solidamente ancoradas ao solo, desempenharam função capital: formavam a própria estrutura, o verdadeiro suporte de toda a fábrica.
Um milagre veio, porém, libertá-las dessa carga secular. A revolução, imposta pela nova tecnologia, conferiu outra hierarquia aos elementos da construção, destituindo as paredes do pesado encargo que lhes fora sempre atribuído. A nova função que lhes foi confiada -de simples vedação- oferece, sem os mesmos riscos e preocupações, outras comodidades.
Toda a responsabilidade foi transferida, no novo sistema, a uma ossatura independente, podendo tanto ser de concreto armado como metálica. Assim, aquilo que foi -invariavelmente- uma espessa parede durante várias dezenas de séculos pode, em algumas dezenas de anos, transformar-se (quando convenientemente orientada, bem entendido: sul no nosso caso) em uma simples lâmina de cristal.
Parede e suporte representam hoje, portanto, coisas diversas; duas funções nítidas, inconfundíveis. Diferentes quanto ao material de que se constituem, quanto à espessura, quanto aos fins, tudo indica e recomenda vida independente, sem qualquer preocupação saudosista e falsa superposição. Fabricadas com materiais leve, à prova de som e das variações de temperatura, livres do encargo rígido de suportar, deslizam ao lado das impassíveis colunas; param a qualquer distância, ondulam, acompanhando o movimento normal do tráfego interno, permitindo outro rendimento ao volume construído.
É este o segredo de toda a nova arquitetura.

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