São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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A poesia do abandono

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

``As formas da cultura exercem às vezes seu mais forte apelo no instante mesmo em que a vida já está lhes deixando para trás." Com estas palavras, o grande crítico vitoriano Walter Pater dá início a seu ensaio sobre Coleridge (em "Appreciations", 1889).
Elas resumem o misto de homenagem e censura que marca o texto inteiro de Pater, mas, para nós, em retrospecto, ganham um peso adicional. Cem anos depois, Pater é um luxo raro, um autor de exceção, enquanto Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) permanece no centro do cânone.
Mas nem por isto a frase de Pater deixa de ser verdade: pelo contrário, num momento em que a crítica vem se voltando cada vez mais para o estudo das situações de limite, da ambivalência e da memória, esse tom peculiar de Coleridge, o abandono constante das coisas, só faz redobrar seu apelo.
Ele é o poeta da passagem, de uma consciência que só se reconhece no instante mesmo em que a vida já está lhe deixando para trás. Vale dizer que ele é um poeta do nosso tempo, talvez até mais do que o nosso tempo é, em alguma medida, obra sua.
Há muitos "Coleridges" convivendo juntos na nossa cultura. Existe o poeta das antologias, um dos três grandes nomes da primeira geração do romantismo inglês (os outros são Wordsworth e Blake). Fora da escola, existe o visionário do palácio de Xanadu, homenageado por Orson Welles em "Cidadão Kane"; e o crítico lapidar, definindo a leitura como ``suspensão voluntária da incredulidade" -palavras repetidas por Sharon Stone, a caminho de seu memorável depoimento em "Instinto Selvagem".
Existe ainda a figura carismática das biografias, o amigo de Wordsworth e mentor de De Quincey, o gênio da conversa, mas palestrante irresponsável, da novela ``The Coxon Fund", de Henry James; e o viciado em ópio e sofredor incurável de um mau casamento.
Num outro plano, não se pode esquecer do Coleridge estudioso de Shakespeare, dividindo até hoje com o setecentista Samuel Johnson a glória de ser seu maior leitor. ``Eu mesmo tenho alguma coisa de Hamlet", pensava ele; não é menos verdade afirmar que o nosso Hamlet tem, também, alguma coisa de Coleridge. Como o próprio Shakespeare e, entre os modernos, Kafka ou Freud, Coleridge é um desses autores que vem frequentar a rotina espontânea da nossa imaginação.
Os abandonos e, junto com eles, o que Freud chamou de trabalho do luto são parte do que há de mais sedutor nessa poesia; mas há uma outra forma ascética de perda, que se revela cedo em sua obra: é o abandono da própria poesia. Quase todos os seus poemas foram escritos num período de cerca de 15 anos, a contar de 1796 (ano de ``A Harpa Eólica"). Em 1811, depois de um longo período de virtual inatividade, ele ainda escreve dois fragmentos impressionantes, ``Ne Plus Ultra", e ``Limbo". A lírica, aqui, chega à fronteira de um novo estado, outra dimensão da linguagem e do pensamento.
Depois disto, ou talvez por causa disto, Coleridge se despede dos ideais de integração que marcam toda sua poesia e passa a dedicar-se exclusivamente à crítica e à prosa. Compreender esta outra passagem de Coleridge -das continuidades da poesia às descontinuidades da prosa- é compreender alguma coisa do que se dá na raiz do ``romantismo", algo que hoje se conhece melhor pelo nome de ``modernidade".
Foi Coleridge o introdutor do idealismo alemão nos países de língua inglesa. Seu diálogo com a filosofia de Kant e Schelling percorre as páginas da "Biografia Literária", um vasto volume ditado nos últimos anos, onde reflexões pessoais se combinam com idéias de método, uma teoria da poesia e a mais vigorosa leitura da obra de Wordsworth. O que fascina Coleridge em Kant, como de resto em Milton e Shakespeare, é uma noção de poesia como província das idéias. A poesia, para ele, é uma forma determinada do pensamento. A poesia pensa um pensamento que não é pensável em outro lugar. E o que o poeta almeja, justamente, é promover a coincidência entre pensamento e poesia.
A partir de poemas como "A Harpa Eólica, "O Rouxinol" e especialmente "Geada à Meia-Noite" (1798), pode-se dizer que a poesia deixa de ter um assunto, exterior a si mesma. Deixa de ter um assunto e passa a ser um processo, que é o poeta pensando. É bem verdade que a integração entre consciência e linguagem é mais uma ficção do que uma solução para os poemas de Coleridge. Mas é deste ideal que procedem sua teoria da imaginação e os ensaios sobre o método.
Um estudo mais paciente de Coleridge precisaria debruçar-se sobre a questão da "forma orgânica, do poema que vai se criando a si mesmo. Desta perspectiva, nenhum poema é mais perfeito do que "Geada à Meia-Noite". Num cenário noturno de inverno, o poeta se deixa guiar pela musa do silêncio e faz de si mesmo um campo infinito de regressões. Imagens dentro de imagens vão conduzi-lo pelos recessos da lembrança, de tal modo que a forma orgânica corresponde aos desvios da consciência.
Na bênção final -uma das passagens mais comoventes da poesia inglesa-, o poema vem se completar num círculo. Coleridge, aqui, descobre o mito da memória. Sua influência pode ser traçada, desde o "Prelúdio" de Wordsworth, o maior poema romântico inglês, até o maior romance moderno, em Proust.
Melhor conhecidos, no entanto, são os três pesadelos góticos, ou fantasmagorias: "A Balada do Velho Marinheiro, "Kubla Khan e "Christabel". Compulsões, ambivalências, terror e sexualidade fazem desses três uma verdadeira floresta de símbolos. Para Coleridge, depois de um poema como "Geada à Meia-Noite", eles são menos um novo caminho do que um labirinto cheio de vozes confusas. Outros autores, mais plenamente irônicos, como Baudelaire ou Tennyson, transitam com sucesso por essas vias. Mas, para Coleridge, ainda seria preciso inventar outra idéia de literatura.
Nem ironia, nem consciência -o que sobra, então, para um poeta?
Admirador da tradição metafísica do século 17, Coleridge, em seus últimos fragmentos, já está no limite de uma poesia tão autoconsciente que tudo se torna alegoria. Em poemas como "Limbo" ou "Ne Plus Ultra", ele abandona toda poesia de molde encantatório.
As ironias agora são grandes demais para o poema. A poesia não cabe mais na poesia; na impossibilidade de fazer as palavras e as coisas coincidirem num universo humano, só resta a Coleridge ver a poesia se dissolver em crítica. Alegorizada ao máximo, a poesia percebe uma poesia mais alta dentro de si, e essa poesia é a prosa. Essa poesia é a crítica, que multiplica as ironias e faz da leitura um novo instrumento de construção e dissolução. É nesta encruzilhada, onde se encontram alegoria, leitura e consciência, que vem se instalar um modelo "moderno" de literatura e crítica -da crítica como literatura e vice-versa.
Coleridge é, como se vê, uma figura central deste grande período, que ainda não acabou. Mal conhecido no Brasil, onde a poesia romântica continua pouco estudada, ressurge agora num coletânea, sob os cuidados de Paulo Vizioli. Em texto bilíngue, encontram-se aí nove poemas, incluindo "A Balada do Velho Marinheiro" e "Geada à Meia-Noite", e umas 50 páginas da "Biografia Literária".
O simples fato de oferecer esses textos ao leitor brasileiro já faz do livro num lançamento importante e as possíveis restrições não desmerecem o resultado. A tradução é o Inferno das línguas -e só quem já tentou sabe o quanto custa sobreviver neste fogo. (O próprio Coleridge, desistindo de traduzir os alemães, reescreveu Schelling com suas palavras, em certos trechos da "Biografia". Menos hábil do que Borges, acabou penando no Purgatório, acusado de roubo e plágio!).
A tradução de Paulo Vizioli será útil, acredito, na medida inversa de suas ambições. Como um instrumento de auxílio à leitura do texto original, é mais bem sucedida do que como uma coleção de poemas em português. Pois deve-se aplaudir as façanhas da métrica e o virtuosismo da rima, mas não quando uma e outra acabam sendo meios de contorção do poema. Com alguma frequência, a tradução se resolve numa linguagem de cancioneiro, como no final da "Harpa: "A paz, esta casinha, e a ti, minha adorada!"
Acentos shakespearianos e miltonianos se perdem, o que é talvez inevitável em qualquer tradução ("These shapings of the unregenerate mind" torna-se, em português, "Essas formulações da mente impenitente", com o feio eco no fim e uma cobra de "ss" no início). A economia do inglês ("Through caverns measureless to man") também cria problemas para o tradutor ("Por antros que incomensuráveis são para o homem"). São questões melhor trabalhadas no texto em prosa da "Biografia".
A boa Introdução tem um caráter informativo, mas talvez excessivamente convencional, quando se pensa no contexto de leitura dos românticos hoje, no Brasil. Vizioli tem razão quando afirma, logo no início, que Coleridge "começa a ombrear com Wordsworth na opinião da crítica atual"; mas, deste ponto de vista, é frustrante não encontrar, no resto da Introdução, quase nenhum indício do que são de fato as preocupações da crítica atual. A Introdução poderia ter sido escrita, sem alterações, há 30 ou 40 anos; e, de fato, a obra mais recente na Bibliografia é de 1968, e a maioria dos outros títulos é da década de 50.
Nada disto invalida o projeto: cada um lerá ali o que quiser. Mas não se pode deixar de apontar um fracasso relativo da empreitada, na medida em que não assume um papel mais crítico, mas também não se contenta com uma função auxiliar. O Coleridge de Vizioli fica lado a lado com um outro poeta, "original", que, traduzido pela crítica hoje é mais contemporâneo do que sua nova tradução.
Isto não é só a repetição do velho adágio, segundo o qual um grande autor é contemporâneo de todas as eras. Num contexto crítico como o nosso, ainda tão dominado pelos ideais modernistas, e tão pouco atento às relações entre o modernismo e o romantismo, a leitura de um poeta como Coleridge poderia ter um efeito maior do que se imagina. A suposta falência da sua poesia é um desafio para a interpretação literária e nos obriga a refletir sobre as falências e bloqueios da nossa própria crítica. Como dizia Álvaro Lins, em outras circunstâncias, "talvez seja a hora de buscar alguma coisa um pouco mais atrás para criar um pouco mais à frente". Mais à frente, também, está Coleridge, esperando para ser recriado e exercendo o seu mais forte apelo contra outras formas da crítica, no instante mesmo em que a vida, quem sabe, já não lhes deixou para trás.

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