São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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Uma ambiciosa travessia literária

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A ambição, o orgulho e a natureza monstruosamente livresca deste romance são desmedidas. Phillippe Sollers é desses para quem muito do que existe -a história, a política, o mundo das mulheres- existe para chegar a um livro. Contanto que seja da literatura francesa: ela é o elemento, no sentido de elemento de propagação mesmo, desse bordelês nascido em 1936 e uma estrela da ``polemologia" -essa atividade também orgulhosamente francesa- desde a década de 60, quando dirigia a revista ``Tel Quel".
Em torno da revista se reunia um grupo que ia de Althusser e seu marxismo ``sem sujeito" (o filósofo faz uma aparição em ``Mulheres", enforcando a sua, como de fato aconteceu), a Barthes (que também aparece para ser atropelado pela furgoneta, no acidente em que morreu em 81), Julia Kristeva e Lacan.
Com o fim da revista em 1982 (foi talvez o último instantâneo do ``gauchisme" literário), Sollers não perdeu o senso agudo de ocupação de espaços: tem uma coluna quase pontificial no ``Le Monde", dirige outra revista, ``L'Infini", e uma coleção na Gallimard. Ao mesmo tempo, seus livros, de título quase sempre genérico, ``Logiques", ``Lois", ``H", ``Paradis", fizeram dele uma espécie de sobrevivente extremo da travessia quase impossível que é hoje a literatura.
Verdade: tão desmedidas quanto a ambição literária de ``Mulheres", com a sua dobra às vezes irritantemente livresca, são a sua feição também de empresa infinita e a sua generosa paixão de tudo narrar e compreender. Este romance (que deixou aturdido o mundo literário europeu quando foi lançado em 1983, pois tinha tantos personagens como um livro de Balzac, e vários deles reconhecíveis) é um desses que o próprio Philippe Sollers chamou de ``livre de base". Sollers os escreve porque, para ele, a ``história do século 20 ainda não está escrita". Seu romance seria, entre outras coisas, expressão de ``desespero intuitivo das nações".
O narrador é um jornalista americano em Paris, que conta suas exaltantes aventuras eróticas e fala sobre suas amigas para o amigo francês, o autor do livro, S: há Kate, jornalista francesa; Cyd, a inglesa; Flora, anarquista espanhola ardentemente pura (``que fulgurância lançada sobre o vício...", extasia-se o narrador); Bernadette, dirigente feminista; Ysia, da diplomacia chinesa e da posição amorosa dos ``canários planantes". Deborah, sua mulher; Sonia, com o gesto comoventemente simples, ``muito dona-de-casa", comenta, ``de por a mão no próprio sexo para evitar que o esperma escorra"; Louise e seu clavecino do sublime, absoluta, ``escaravelho do som".
O mundo ondulante e diverso das mulheres está aqui não porque esse é um ``livro paquerador à la Bukowski", na expressão do próprio Sollers (embora ele seja um pouco isso também). Mas porque ``as mulheres são o eixo da demonstração", diz ele, meio como um Henry Miller cartesiano. Desafortunadamente, não temos a demonstração até o fim. O pesadelo da história (com os atentados e a própria violência repressiva no início da década de 80, contra a sinagoga em Roma e contra os refugiados palestinos dos campos de Sabra e Chatila, o golpe na Polônia) ocupa o horizonte político e cultural europeu, atinge de morte uma das personagens (vítima de um atentado em Paris) e aquele ``desespero intuitivo das nações" toma as páginas do romance.
Pena que o ``eixo de demonstração" de Phillippe Sollers ou do seu alter ego no romace, o personagem S, não seja como o das suas personagens femininas. Papista convicto (seu último livro, ``Le Secret", do ano passado, tem como "leitmotiv" o diálogo sussurrante na prisão entre João Paulo 2º e o turco Ali Agca, o do atentado), acerbamente anti-comunista (a esquerda literária de ontem e hoje, Aragon, Elsa Morante, Moravia, Garcia Marquez, é estapeadíssima), duro e eurocêntrico com o que dez anos mais tarde, hoje portanto, seria conhecido como ``multiculturalismo", ele força a nota aqui e ali, tomando por civilização o que talvez fosse regressiva restauração. Isso não deixa porém de fazer do ainda abrasivo magma romanesco e cultural que é este livro de 1983, além de um documento da nossa época, uma majestosa expressão da difícil travessia da literatura pelo corpo de nossa época.

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