São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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Um caleidoscópio crítico de textos e imagens

KATIA CANTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por sua atitude interdisciplinar e articulações históricas remissivas, ``Laokoon Revisitado", de Aguinaldo José Gonçalves, pode ser lido, à primeira vista, como um emblemático exercício de teoria pós-moderna.
Em primeiro lugar, porque o livro revisita um clássico, no caso, ``Laokoon, ou os Limites da Pintura e da Poesia", escrito pelo alemão Gotthold E. Lessing e publicado pela primeira vez em 1766.
A atitude pós-moderna também está ligada a um olhar interdisciplinar, histórico-desconstrutivista, focado na relação entre artes plásticas e literatura. Embutido na metodologia de pesquisa do autor estão (subentendidos) os conceitos de ``obra" e ``texto", de Roland Barthes, e a visão fenomenológica coringa de ``texto" referindo-se a qualquer produção artística.
O tratado de Lessing é uma leitura do conjunto escultórico ``Laokoon", encontrado em 1506, em escavações feitas em Roma. A obra é atribuída ao escultor grego Alexandre Rodes, com co-autoria dos filhos Polidoro e Atenodoro. Teria sido realizada durante o reinado do imperador Tito.
Ali está representada a dor do sacerdote Laokoon junto aos dois filhos, no momento de suas mortes, envenenados por duas serpentes que se enroscam em seus corpos. O conjunto escultórico é analisado por Lessing sobretudo em relação ao drama poético homônimo de Virgílio.
Partindo de uma visão imitativa da arte, em que o ato de decodificação da obra é uma espécie de preenchimento de vazios, Lessing constata que o sofrimento expresso na obra escultórica é mais tênue e contido e menos pungente do que aquele descrito no texto de Virgílio. A pintura e a escultura seriam para ele limitadas dentro de um aspecto espacial, imediato, imitativo do real. Já a poesia -arte temporal- é apreendida pouco a pouco, com maior lentidão e, consequentemente, profundidade.
Pela influência que a obra de Lessing teve na inteligência da época e nos estudiosos de analogias artísticas de épocas posteriores, ela é considerada por Gonçalves como um ``caleidoscópio crítico que resulta num convite ao estudo e à investigação".
A primeira parte do livro engloba posturas teóricas produzidas por pensadores pertencentes a quatro períodos da história ocidental -clássico, romântico, pós-romântico e simbolista/impressionista- a respeito das coincidências e divergências perceptivas entre as duas áreas de criação.
Aguinaldo José Gonçalves assume que a busca das analogias entre pintura e poesia remonta à Antiguidade, é recuperada na interdisciplinaridade imposta pelo espírito do Renascimento e, no decorrer da história ocidental moderna, assume aspectos multifacetados.
Nesse caldo de questionamentos filosóficos estão citações de Leonardo Da Vinci, que encarna o ideal renascentista, assim como ``Refléxions Critiques Sur la Poésie et la Peinture" (1719), do abade Jean-Baptiste Du Bos -que estabelece uma diferença entre os signos ``naturais", baseados em imitações ``reais" (como pintura e escultura), e os signos ``artificiais" (as imitações poéticas).
O livro é também uma releitura das releituras de Lessing, como é o caso da obra de Irwing Babbit, intitulada ``The New Laokoon" (1911). Analisa posteriormente o trabalho de Joseph Frank, ``A Forma Espacial na Literatura Moderna", que, a partir da prosa de Gustave Flaubert e de James Joyce e da poesia de Ezra Pound e T.S. Eliot, discute o conceito de espacialidade no texto literário.
Se, em seu contexto, Lessing estabelece um pensamento racionalista, que separa e diferencia o caminho trilhado entre artes plásticas e poesia, pensadores modernos tendem a unir a percepção artística. A atitude teórica unificante funciona como espelho da própria tendência interdisciplinar que segue a produção artística do pós-romantismo, no final do século 19.
É apenas depois de costumar uma grossa tapeçaria de teorias sobre artes plásticas e literárias que Aguinaldo José Gonçalves imerge na melhor parte do livro. O mundo das relações entre obras e artistas, estabelecido na modernidade a partir de uma mudança na concepção artística, é mais suculento do que o mundo das relações teóricas.
O final do livro, introduzido pela leitura de um texto de ``À Sombra das Raparigas em Flor", de Marcel Proust, desenvolve três exercícios de comparação entre obras poéticas e pictóricas modernas, aos pares. Um deles confronta Oswald de Andrade com Piet Mondrian; outro sobrepõe Manuel Bandeira com René Magritte. O terceiro articula as obras de João Cabral de Melo Neto e Joan Miró.
O resultado é uma aventura repleta de "insights poéticos, que, se não chega a fundar uma nova metodologia, oferecem uma sintonização original com a obra de arte. Como explica João Alexandre Barbosa no prefácio do livro, ``não é que Manuel Bandeira leia Magritte em seu texto, nem que o mesmo ocorra com os outros dois poetas e pintores: é que os seis percebem aspectos da realidade que, transformados por suas linguagens ou transformando suas linguagens, se traduzem em textos e imagens, cujos dispersos resíduos, fragmentados de uma expressividade, são agora recuperados pela leitura comparativa".

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