São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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A democracia sentimental

LUIZA FRANCO MOREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cassiano Ricardo é um poeta de que todos ouvimos falar, mas que poucos chegam a ler. Talvez haja bons motivos para não ler Cassiano; mas há motivos ainda melhores para começar a leitura de sua obra e fazer justiça à qualidade, muitas vezes alta, tanto de sua poesia e sua prosa. É no que tem de mais desagradável que a carreira de Cassiano mais nos ensina sobre o poder e os limites da literatura e sobre o que nos arriscamos, se escrevemos e lemos.
Cassiano Ricardo foi um defensor do Estado Novo, o regime ditatorial liderado por Getúlio Vargas entre 1937 e 1945. Em 1940, publicou um longo trabalho em prosa, ``Marcha Para Oeste", em que Vargas vem descrito como ``o homem bom governando os homens bons" (pág. 495). No ano seguinte, aceita o convite para dirigir no Rio o jornal ``A Manhã", na expressão do próprio Cassiano, um ``órgão oficial" do Estado Novo (``Viagem", pág. 157). É lógico supor que a publicação de ``Marcha Para Oeste", um ano antes, tenha contribuído para fazer de Cassiano um nome viável para o cargo.
``Marcha Para Oeste" retoma os temas nacionalistas explorados no conhecido poema de Cassiano, ``Martim Cererê" (1928) (1). É de uma representação do Brasil, paralela à do poema modernista, que o texto posterior retira argumentos para mostrar que o governo Vargas corresponde à forma correta do Estado brasileiro. Dos anos 20 aos 40 (e até o final da vida), Cassiano Ricardo permanece fiel à versão autoritária do nacionalismo que elaborou no início da carreira. Um aspecto notável de sua atividade intelectual é que Cassiano transformou essa imagem do Brasil, armada inicialmente por meio da poesia, em um fato da vida ideológica do Estado Novo. (...)
``Marcha Para Oeste" trata do Estado Novo e de sua política cultural apenas nos dois últimos capítulos. Os 18 anteriores voltam-se para o fenômeno das bandeiras, construindo a partir destas a imagem da nação, laboriosamente, para passar depois, rapidamente, ao modelo correto para o Estado brasileiro. O antepenúltimo capítulo realiza a transição da narrativa meio historiográfica e meio ficcional da expansão bandeirante para o projeto político defendido pelo livro. A citação abaixo é tirada desse capítulo e ilustra recursos retóricos típicos de Cassiano:
"O amarelo (do ouro) passara a ser a sua obsessão (do bandeirante). Pobres dos que, nesse meio, perdessem a alegria da cor. E como índios e negros gostam de cores vivas, o bandeirante rima bem com eles nesse mundo onde tudo é tinta de raças e de costumes.
A cor indica a riqueza de alma primitiva que há no brasileiro e constitui o traço de união entre ele e uma natureza que é um berreiro cromático, maravilhoso e bárbaro" (pág. 501).
Para evocar a alma brasileira, estas linhas retomam motivos insistentes na análise anterior da bandeira: o meio tropical, as três raças e o bandeirante, que as lidera. Aqui, como em todo o livro, o bandeirante ``harmoniza" a natureza, o homem branco, os negros e os índios. Quando viaja sertão adentro em busca de ouro, é ele quem conquista o mundo natural e dá forma ao território do Brasil.
Como chefe da bandeira, organiza as ``três raças" num grupo hierárquico, em que reina a harmonia, porque cabe a cada raça o papel adequado: o homem branco representa ``o governo, a autoridade", enquanto o índio traz ``mobilidade" para a empresa comum e o negro contribui com um ``sossego psicológico e fixador" para o cultivo e a mineração (pág. 513-4). Esta imagem, ao mesmo tempo corporativista e racista da bandeira, aparece em ``Marcha Para Oeste" como modelo da nação e do Estado brasileiro.
Cassiano havia explorado temas semelhantes no poema de 1928. ``Martim Cererê" descreve o bandeirante como uma síntese de raças -um ``gigante de três cores"- e lhe narra os feitos na construção do Brasil. Ao contar o nascimento do herói, o poema já deixa entrever preconceitos que vão aparecer explicitamente em ``Marcha Para Oeste".
Os bandeirantes são fruto da união do homem branco com a mulher índia. Este casal, por sua vez, pôde se reunir apenas porque o europeu traz como prenda para a namorada a ``noite africana", naturalmente em porões de navio. (Vale a pena sublinhar que, neste mito de origem, o homem branco lidera não só o índio e o negro, mas a mulher também.)
Há uma dificuldade óbvia em elaborar a imagem da nação a partir do bandeirante: este é um herói de São Paulo. É provável que a passagem de figura regional a líder brasileiro não fosse tão problemática quando ``Martim Cererê" foi publicado pela primeira vez. No fim dos anos 20, a máquina do Partido Republicano Paulista -da qual Cassiano, editor do ``Correio Paulistano", estava próximo- ainda dava as cartas na política brasileira.
Durante os anos Vargas, porém, a passagem do universo paulista ao da nação deve ter se tornado mais delicada. Getúlio, afinal, era gaúcho. Mais ainda, chegou ao poder e nele se manteve por meio de repetidas derrotas inflingidas aos políticos de São Paulo.
A citação acima realiza a transição do heroísmo paulista à alma brasileira. Neste exemplo, o passo é bem-sucedido graças ao uso da cor como imagem literária (2). Uma breve referência à cor basta para marcar a continuidade entre a alma brasileira e, de um lado, o meio tropical -definido pela ``alegria da cor" e por uma natureza cromática, maravilhosa e bárbara-, e, de outro, o povo -índios, negros e bandeirantes, que não só gostam de cores vivas mas até são ``tinta de raças e de costumes". Portanto, é por meio do recurso à metonímia que Cassiano faz a alma brasileira surgir da interação entre meio, raças e bandeirante.
Mesmo quando descreve esta alma, Cassiano trabalha com metonímia e imagens de cor. Na fórmula ``riqueza de alma primitiva" há uma relação de contiguidade entre ``riqueza" e o amarelo do ouro, que obceca o bandeirante, enquanto um passo curto leva do gosto ingênuo de índios e negros ao primitivismo da nação. São convincentes estas linhas, mas nelas não encontramos recursos propriamente lógicos, como a dedução ou a inferência.
Na medida em que aproveita os recursos da retórica, mas evita os da lógica, a prosa de Cassiano busca convencer por meio de uma série contínua de afirmações e imagens, deixando de lado o exame de fatos ou a ambição de construir argumentos que se mantêm por seus próprios méritos. O texto de Cassiano dirige-se implicitamente a um leitor que se deixa afetar facilmente por sua linguagem decorativa e exerce pouca capacidade crítica. Mais ainda, já que todos que o lêem precisam aceitar as regras por meio das quais o livro se articula para poder acompanhá-lo, a retórica de Cassiano tende a amoldar os que se aproximam de ``Marcha Para Oeste" à figura do leitor aquiescente ideal.
O texto liga sua estratégia de persuasão ao tipo de leitor que quer atingir. Por exemplo: ``Só a imagem, pois, convence o povo, em nossa democracia sentimental" (pág. 500). Ou, melhor ainda: ``Em campanhas políticas, vence o orador que lança mão da imagem e não o que aristocratiza o pensamento pelo raciocínio" (págs. 499-500). Estas frases parecem compor uma interpretação política para a retórica do livro. O uso insistente de imagens marcaria o destinatário do discurso como ``o povo" e a posição política do autor como ``democrática". (Aqui, como no decorrer de ``Marcha Para Oeste", ``democracia" é uma outra maneira de dizer Estado Novo.) Para Cassiano, parece que aristocracia e razão pertencem a campos políticos opostos.
``Marcha Para Oeste", porém, nem sempre cumpre a promessa de articular uma ``democracia" anti-racionalista. Como exemplo, veja-se o final da citação acima. A sequência de adjetivos ``cromático, maravilhoso e bárbaro" compõe um fecho de ouro notável, mas que o leitor popular descrito por Cassiano teria dificuldade em apreciar. O vocabulário é difícil. Apenas um leitor sofisticado perceberia a ironia de emprestar ao adjetivo ``bárbaro" conotações positivas. E bem poucos notariam o belo efeito técnico que Cassiano tira da aliteração ao escrever uma frase que é eufônica, apesar de insistir no duro som do /r/. Este trecho busca moldar um leitor pouco crítico, que corresponde à imagem que Cassiano faz do ``povo"; ao mesmo tempo, por meio de inflexões retóricas mais sutis, evoca um leitor de elite.
(...) Estão reunidos aqui os elementos para apreender a dimensão populista da retórica de ``Marcha Para Oeste". Apesar de este trecho estar afinado mais a um leitor pouco crítico (o ``povo", para Cassiano), à medida que lança mão de recursos literários sofisticados, também evoca discretamente um leitor de elite (para Cassiano, o amálgama de intelectuais e Estado). Por meio do apelo combinado às massas simples de espírito e ao círculo restrito do poder, a retórica de Cassiano expressa e define um projeto político semelhante ao do Estado Novo. Finalmente, ao evocar de modo verossímil a imagem do intelectual em consonância com o povo, este texto oferece tal lugar aos que o lêem.
Há inúmeros pontos de contato entre esta imagem do leitor e a projetada por ``Martim Cererê". No poema, Cassiano se dirige ao leitor ao mesmo tempo infantil e maduro. Esta figura contraditória arma-se a partir da representação dupla do Brasil, que está no cerne estrutural do poema e governa-lhe a retórica. Por um lado, por meio de uma alegoria extensa, o texto apresenta a nação como um menino travesso e simpático; por outro, por meio do falante, apresenta o Brasil como um adulto responsável.
Os melhores poemas do livro exploram a tensão entre as perspectivas de menino e homem feito. Por exemplo, o conhecido ``Café-Expresso": "Café expresso -está escrito na porta./ Entro com muita pressa. Meio tonto,/ por haver acordado tão cedo.../ E pronto! parece um brinquedo:/ cai o café na xícara pra gente/ maquinalmente.// E eu sinto o gosto, o aroma, o sangue quente de São Paulo/ nesta pequena noite líquida e cheirosa/ que é a minha xícara de café.// A minha xícara de café/ é o resumo de todas as coisas que vi na fazenda e me vêm à memória apagada..". (3)
Já que a perspectiva do adulto estabelece-se com firmeza, a linguagem permanece sóbria e precisa. As cenas rurais são introduzidas como "flashbacks, de modo a dar profundidade maior ao presente urbano do poeta. Neste caso, o adulto que nos conta histórias da infância procura um leitor adulto também. (...)
Estas análises de texto revelaram elementos formais na raiz da força literária de "Martim Cererê" e "Marcha Para Oeste". Permitem, também, retornar à questão do impacto histórico da obra de Cassiano. É de se esperar que o livro em prosa de 1940 fosse bem recebido nos círculos responsáveis pela política cultural do Estado Novo, já que constrói seu leitor como um intelectual populista. A nomeação de Cassiano para diretor de "A Manhã, em 1941, mostra que, ao menos para seu autor, o livro criou efetivamente o papel de ideólogo getulista.
Por outro lado, encontramos ecos de "Marcha Para Oeste" na conhecida revista "Ciência Política": a cultura brasileira encontra-se em formação, a índole nacional universalista e humanista é "resultante da fusão de diversas etnias e culturas e o Estado Novo é "consequência de nossa autêntica cultura", disse Humberto Grande numa conferência em 1942 (4).
Os ecos de "Marcha Para Oeste" são mais diretos em "A Manhã": entre as sessões do jornal, uma leva o título de "Marcha Para Oeste". Mônica Pimenta Velloso já mostrou que os editoriais trabalhavam argumentos que coincidiam de perto com os do livro em prosa (5). Em suas memórias, Cassiano anota que o jornal seguia uma linha "doutrinária"; na lembrança de um intelectual antigetulista, "A Manhã" fazia propaganda das realizações do governo.
Reconstitui-se um percurso histórico: sua defesa do Estado Novo levou Cassiano a um cargo de responsabilidade no interior do regime; como resultado, sua argumentação pró-Getúlio veio a circular por intermédio de um jornal diário, atingiu os leitores deste e ajudou a persuadi-los de que era legítima a ditadura.
A leitura de "Martim Cererê", por outro lado, sugere que este se volta para um público distinto do que "Marcha Para Oeste" busca atingir. É de se esperar que este poema, no qual Cassiano dirige-se a um leitor ao mesmo tempo infantil e adulto, fosse útil para o ensino.
A visualidade das imagens, a simplicidade de ritmos e vocabulário e a insistência em cenas escolares devem ter feito de "Martim Cererê" um texto atraente para situações didáticas. Ao mesmo tempo, por meio do uso de um falante adulto, o poema põe em perspectiva o mundo infantil e estabelece os valores hierárquicos da nação. O jogo textual entre criança e adulto funcionaria bem numa sala de aula. "Martim Cererê" atrairia o interesse dos alunos por sua ênfase em aventuras e por sua linguagem decorativa e, ao mesmo tempo, levaria os jovens a se identificarem com o adulto de valores patrióticos. (...)
Não estou sugerindo que "Martim Cererê" é um texto apenas ideológico; pelo contrário, creio que há muito no poema que se lê com prazer até hoje. Mas é fato que "Martim Cererê" desempenhou um papel ideológico. À diferença de "Marcha Para Oeste", o poema não repercutiu apenas nos círculos dirigentes do Estado Novo. A poesia modernista de Cassiano teve impacto mais difuso e também mais duradouro.
O movimento modernista até hoje nos fascina. Parece que, desde que irrompeu em cena -há bem mais de 60 anos-, cada geração de intelectuais ocupa-se em apresentar dele uma nova leitura. É frequente que, nesse processo, críticos, historiadores ou poetas definam seu próprio perfil. Talvez, como resultado das dificuldades por que a ditadura militar fez passar tantos intelectuais (muitos de nós durante nossos anos de formação), hoje há bastante interesse em examinar os vínculos entre o modernismo e o Estado Novo.
Entre os vários projetos nacionalistas elaborados pelo movimento, é inegável que o de Cassiano teve o impacto mais direto na vida ideológica do regime, por meio de "Marcha Para Oeste" e do trabalho do autor à frente de "A Manhã". A repercussão de "Martim Cererê", porém, não se esgotou naquele período. Apesar disso, hoje o livro encontra-se praticamente esquecido. Para que este poema volte a despertar o interesse que merece, quis propor um modo de ler Cassiano que chama atenção -criticamente- para a eficácia literária e política de sua obra. Por esta via de acesso, proponho, evita-se o risco de lhe reproduzir a ideologia nacionalista e corporativista.

NOTAS
(1) Randal Johnson registra a coincidência entre as imagens aproveitadas na campanha expansionista do Estado Novo e as desenvolvidas pela corrente verde-amarela do modernismo. Parece-me mais útil considerar o paralelismo temático entre os textos de Cassiano mencionados acima. Basta lembrar que é de Olavo Bilac a letra do "Hino à Bandeira para constatar que não se constrói no modernismo este imaginário patriótico. Cf. Johnson, "O Futuro Nos Pertence. pág. 106.
(2) Alcir Lenharo comenta o uso de imagens de cor em "Marcha Para Oeste. Em alguns pontos, meu argumento coincide com o dele. Ver "Sacralização, págs. 57-60.
(3) "Martim Cererê (São Paulo, Novíssima, 1934), págs. 149-150. Na primeira edição, o mesmo poema aparece, em versão menos bem-acabada, com o título "A Minha Xícara de Café. Ver: "Martim Cererê, São Paulo, Hélios, 1928, págs. 88-90.
(4) "Ciência Política, Volume 4, Fascículo 6, pág. 16. Ângela de Castro Gomes descreve esta revista como a ``publicação mestra" do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo. Ver: ``A Invenção do Trabalhismo", Rio, Relume Dumará, 1994, pág. 10
(5) Monica Pimenta Velloso, ``O Mito da Originalidade Brasileira", págs. 163-168

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