São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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Além da palavra

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há um encontro íntimo e bem-sucedido entre poesia e filosofia nos poemas de Michael Palmer, sobretudo nos que ele reuniu sob o título "At Passages" (Nas Passagens), que acaba de ser lançado nos Estados Unidos.
Nascido em 1943, Palmer -que reside em San Francisco, Califórnia, com mulher e filha- é um "independent writer" (escritor independente). A informação não é gratuita, se se tem no horizonte que a Language Poetry (Poesia de Linguagem) é ainda um movimento ativo, que se irradiou por todo aquele país, a partir de San Francisco e de Nova York. Exemplo de "language poets": Charles Bernstein e Diane Ward.
Embora não seja um "language poet", a poesia de Palmer tem alta consciência de linguagem -precisamente no sentido em que Mikhail Bakhtin empresta ao termo: "O enorme trabalho do artista com a palavra tem por objetivo final a sua superação... (...) O artista liberta-se da língua em sua determinação linguística não ao negá-la, mas graças ao seu aperfeiçoamento imanente. O artista como que vence a língua, graças ao próprio instrumento linguístico, e, aperfeiçoando-a linguisticamente, obriga-a a superar-se a si própria".
Essa superação, no caso de "At Passages", escrito -como já o seu livro anterior "Sun" (1988)- nas fronteiras da filosofia e da poesia, contém uma tentativa de ampliar a compreensão da realidade e de criticá-la: "Certas palavras e imagens/ ou parte de imagens/ se lascaram/ frequentemente aparecem à venda/ na calçada, tendas,/ ante os muros/ de outras cidades/ Eu também tenho imagens à venda:/ a imagem do poema/ e pode ser achada/ no reverso dessa página".
Um dos versos do início desse poema, "Revelações", remete à poesia de Wallace Stevens e, especificamente, a um poema intitulado "O Vidro Índigo na Relva". Palmer: "Indigno o escrever no muro/ é o escrever designado/ obscuro. Os dois juntos/ formam um terceiro tipo...". Stevens: "Qual é real -/ Essa garrafa de vidro índigo na relva,/ Ou o banco com o vaso de gerânios, o/ colchão manchado e o macacão lavado secando ao/ sol?/ Qual destes contém na verdade o mundo?/ Nenhum dos dois nem os dois juntos" ("The Indigo Glass In the Grass").
Impressiona em "At Passages", que reúne cerca de meia centena de textos, a elegância e a precisão do verso longo, pouco e muito mal praticado aqui no Brasil. Veja-se: "Our errors at zero -milk for mist, grin/ for limbs, mouths for names- or else hours of barks..". ("Nossos erros ao zero -leite para a névoa, riso/ aos limbos, bocas para nomes -ou horas tantas de casca...).
Palmer, em seus versos, não entrega de pronto os sentidos para o leitor. Seus textos, sempre sóbrios, às vezes misteriosos e lúdicos, trabalham com uma espécie de câmara de eco de significados -o fim dos poemas explicitam seus inícios.
Comparando os poemas de Palmer aos de Paul Celan, a ensaísta Marjorie Perloff (já traduzida no Brasil) anota que o absurdo e tenso deslocamento, que as pessoas experimentam no mundo pós-urbano deste fim de século, é um dos temas principais de seu trabalho: "Nos círculos das redes/ no primeiro rasgo/ margem de uma margem/ a unidade das distâncias/ entre olho e pálpebra".
Palmer parece, por outro lado, cumprir o roteiro que William Carlos Williams estabeleceu para si mesmo e para a poesia: o poeta pensa com seu poema. E pensar com o poema quer dizer ritmo, jogo de sintaxe, sentimento de medida, conteúdo, propriedade de dicção.
A poesia de Palmer é também experimental, mas experimental no sentido em que Robert Creeley, sempre com bom humor, definiu o termo: "Só se o mental dessa palavra significar consciência de pensamento e de `thingness', de materialidade da linguagem".
Palmer reflete sobre "os baixos" da condição humana. E lembra, de algum modo, o "Retrato de Poeta", de João Cabral: "O poeta de que contou Burgess,/ que só escrevia na latrina,/ quando sua obra lhe saía/ por debaixo como por cima,/ volta sempre à lembrança/ quando em frente à poesia/ meditabunda que/ se quer filosofia(...)/ Pois tal meditabúndia/ certo há de ser escrita..."

ONDE ENCOMENDAR
"At Passages, de Michael Palmer (ed. New Directions, US$ 11.95) pode ser encomendado na Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, cj Nacional, tel. 011/285-4033, São Paulo)

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