São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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O RISCO MODERNO

MARIO CESAR CARVALHO
DO ENVIADO ESPECIAL

A seguir, o arquiteto Lucio Costa fala de patrimônio histórico, de Aleijadinho e conta como criou o traçado de Brasília.

Folha - O sr. já havia descoberto Aleijadinho em 1937?
Costa - Eu fazia certas restrições a essa obsessão das pessoas por Aleijadinho, quando havia uma tradição colonial muito variada. Achava que tudo isso era menosprezado em seu favor.
Eu, erradamente, lamentava a projeção de Aleijadinho. Hoje, reconheço que a personalidade importante na história da nossa arquitetura é o Aleijadinho. Sou apaixonado por ele.
Folha - O sr. projetou o conjunto de prédios no Parque Guinle nos anos 40, uma época em que se dizia que o carioca de classe média alta não aceitaria morar em apartamento. Foi fácil vender os apartamentos?
Costa - Não. Custou um tempo, porque os corretores não sabiam vender apartamento. Esse projeto foi um combate desde o começo. Queriam fazer um prédio imitando o Palácio das Laranjeiras. Eu achava que não podia imitar porque ia ficar parecendo uma senzala ao lado da casa grande.
Foi difícil convencer os Guinle a fazer um prédio contemporâneo. Eles aceitaram porque eu não pedia muito dinheiro. Depois, eles fizeram um prédio maior para recuperar o dinheiro.
Folha - Como o sr. virou urbanista sem nunca ter estudado sistematicamente urbanismo?
Costa - Urbanismo era dado no último ano da escola. Depois, com Le Corbusier, voltei a me interessar pelo assunto. O Corbusier tratava o urbanismo como coisa fundamental e a arquitetura como coisa complementar. Foi com ele que me apaixonei por urbanismo. Não dá para separar a arquitetura do urbanismo.
Folha - No Memorial de Brasília, o sr. diz que não buscou o projeto, mas que estava se desvencilhando de uma solução. O sr. não estudou o Plano Piloto?
Costa - Não, eu não estava pensando em Brasília. Fui procurado por muitos arquitetos que queriam minha colaboração e sempre recusei. Eram seis meses de prazo e os arquitetos achavam o período curto. Nesse intervalo, fui aos Estados Unidos, convidado pela Parsons School of Design. Não estava interessado no concurso. Quando voltei por mar, comecei a me interessar por Brasília.
Cheguei, faltavam menos de dois meses para terminar o prazo, e me ocorreu uma solução que me pareceu válida. Desenvolvi a idéia e apresentei na última hora, no último dia. Já estavam fechando o guichê. Fiquei no carro e minhas filhas foram entregar o projeto.
Folha - A idéia já era a dos eixos se cruzando em cruz?
Costa - Era, mas não tem nada de religioso. Não me considero ateu, nem religioso. A minha sorte é que na comissão julgadora tinha três estrangeiros. Um deles, um arquiteto inglês chamado William Holford, me pareceu a cabeça mais lúcida dos três estrangeiros. A impressão que me ficou é que a opinião dele pesou muito.
Folha - Se o sr. não estudou o projeto para Brasília, então foi iluminação?
Costa - Em parte, foi iluminação. Não tinha consciência, mas estava preparado para o projeto.
Folha - Brasília é acusada de ser uma cidade autoritária...
Costa - A cidade é a mais democrática possível. É um cacoete chamarem a cidade de autoritária. Não tem justificativa. A cidade tem um espírito aberto. Eu já disse que a Praça dos Três Poderes era a Versalhes do povo.
Folha - Havia uma idéia socialista por trás de Brasília?
Costa - Talvez. Embora eu não me considere socialista, no fundo a minha abordagem tinha sempre um lastro socialista. Mas foi sem querer. Nunca pensei em conotações políticas. Eu sempre fui muito liberal. Na página final do livro, escrevo que não sou socialista nem capitalista e vou explicando o que sou. Brasília saiu daquele jeito porque eu já estava imbuído do interesse social, sem estar consciente disso.
Folha - Acusam Brasília de ser uma cidade artificial.
Costa - Todas as cidades projetadas são artificiais. Mas artificial não no sentido pejorativo, mas como uma invenção pessoal. Partiu de uma cabeça e um criador.
Folha - Dizem que Brasília é chata porque não tem esquinas.
Costa - Isso é uma bobagem, porque cada entrada de conjunto de quatro superquadras é uma esquina. As superquadras vão-se arrumando ao longo do eixo rodoviário e, de quatro em quatro, elas formam uma esquina.
Toda entrada de superquadra é uma esquina. Tem restaurante, café, aquelas coisas características de esquina. Não tenho nada contra a esquina. As pessoas não percebem as esquinas de Brasília porque estão habituadas a esquinas muito primárias. Lá, esquina é uma coisa mais urbana.
Folha - Com quais críticas a Brasília o sr. concorda?
Costa - As críticas simpáticas eu recebo de bom grado e as antipáticas são de pessoas que já são prevenidas contra a cidade. Um crítico disse uma vez que Brasília era nome de cozinheira. É um preconceito muito arraigado.
Folha - Brasília não tem nada de negativo?
Costa - Deve ter, mas não sou eu a pessoa mais indicada para falar disso. Sou apegado a Brasília.
Folha - O sr. disse que Brasília não foi concluída. O que falta a ser feito na cidade?
Costa - O essencial está lá. Falta só arborizar as áreas não edificadas. Sou favorável ao plantio de arvoredos e bosques. Em toda quadra, foram reservados 20 metros para plantar dois renques de árvores de porte. Com o tempo, as copas se fecham e formam uma moldura verde. Em muitas quadras, falta essa definição de enquadramento verde.
Folha - Há críticos que dizem que a arquitetura moderna tem servido ao gosto de governos autoritários. O prédio do Ministério da Educação foi feito sob o Estado Novo e Brasília cresceu sob o regime militar. O sr. concorda com essa idéia de que a arquitetura moderna é tão vaga que serve a regimes autoritários de direita ou de esquerda?
Costa - Não acho isso uma consideração negativa. É um bom sinal o urbanismo funcionar bem num governo de direita ou de esquerda. O bom urbanismo está acima das ideologias. Pode ocorrer tanto num sistema político autoritário quanto num liberal.
Tudo depende dos profissionais responsáveis. Se eles são submissos a caprichos políticos, então são irresponsáveis. O verdadeiro urbanista está acima da direita e da esquerda.
Folha - O sr. já disse que o excesso de originalidade é um defeito em arquitetos. Por quê?
Costa - Não é o excesso de originalidade, é a preocupação com originalidade. É um defeito você começar a projetar qualquer coisa preocupado com originalidade.
Ela tem de ser intrínseca. Jamais deve estar na cabeça do arquiteto. Preocupação com originalidade é um mau começo, um defeito. Já começa errado.
Folha - O sr. chama Le Corbusier e Niemeyer de gênios, mas define-se como um ``espírito normal". O que é isso?
Costa - É um espírito que não tem essas preocupações de figurar como evidência pessoal. Nunca tive essa ambição, de querer estar em evidência. Se tive alguma evidência, é apesar de mim e não por culpa minha.
As circunstâncias me puseram no cargo de diretor da Escola de Belas Artes, para organizar o grupo que fez o prédio do Ministério da Educação, e assim por diante.
Não tenho prazer em aparecer, nem me preocupo em ser discreto. Respeito quem gosta de aparecer, mas não fui talhado nessa linha de montagem. Fico fazendo o que me cabe. Faço o possível para não ficar em evidência.
Folha - Em 1969, quando fez o projeto para a Barra, o sr. previa grupos de prédios bastante separados uns dos outros. Por que o plano fracassou?
Costa - O espaçamento seria de 1 km, 1,5 km. Isso não aconteceu, mas está freando a ocupação geral. A Barra está se desenvolvendo com características mais generosas que o resto da cidade.
Folha - O sr. não sente culpa pelo que ocorreu à Barra?
Costa - Não, era de se esperar. A vida é mais rica, mais selvagem e mais forte que os projetos individuais. Já de saída, eu sabia que isso era uma fatalidade histórica.
Folha - Em 1930, o sr. disse numa entrevista: ``Fazemos cenografia, `estilo', arqueologia, fazemos casas espanholas de terceira mão, miniaturas de castelos medievais, falsos coloniais, tudo, menos arquitetura". Mudou algo nesses 65 anos?
Costa - Não tanto quanto deveria ter mudado. Muito do que eu falei está de pé, mas já existe uma série de critérios novos. De certo modo, melhorou. Não é só o lado negativo que cresce.
Folha - O sr. gosta da obra de algum dos jovens arquitetos?
Costa - Gosto dos renovadores, mas não ouso citar nomes.
Folha - Por que a arquitetura moderna é considerada capricho de arquiteto até hoje?
Costa - Ela ainda dá cabeçadas, mas o panorama é melhor do que na época em que comecei. Não há mais hostilidade contra os inovadores modernos. Ela vai se tornar linguagem do senso comum quando madurar. É questão de tempo.
Folha - O sr. diz que o que faz uma cidade funcionar é o estabelecimento de uma série de critérios simples. Isso é válido para metrópoles como São Paulo, Tóquio ou Cidade do México?
Costa - Não, já é tarde. Essas cidades cresceram demais, já passou a oportunidade. Nós, talvez, estejamos vendo essas dificuldades por burrices congênitas.
Folha - O sr. saberia o que fazer para melhorar a qualidade de vida nessas cidades?
Costa - Sinceramente, não. Mas acho que essas cidades têm salvação. A vida é mais rica do que a nossa pobre filosofia e acaba dando certo. Há uma tendência a acertar. O resultado final é sempre a favor.
Folha - O que o sr. acha da arquitetura pós-moderna?
Costa - Falar em pós-moderno é uma precipitação pedante. O futuro é que dirá se a arquitetura é pós-moderna ou não.
Essa coisa de criar cenários ocorre nos Estados Unidos e os Estados Unidos não têm muito o que falar para o mundo. Os americanos já contribuíram com o máximo para a vida moderna e isso merece um respeito enorme. Gosto muito dos EUA, mas não podemos esperar mais deles. A Europa unida é que tem muito recado a dar, inclusive em arquitetura, por causa da diversidade de culturas.
Folha - O sr. nasceu em 1902 e está chegando ao final do século 20. O que este século produziu de melhor?
Costa - Não ouso fazer distinções. Fui acompanhando a vida, sendo castigado. Sinto-me culpado pelo acidente que matou minha mulher. Isso me marcou por muito tempo (Costa bateu o carro numa árvore, acidente em que morreu sua mulher Julieta, em 1954).
Fiquei inteiramente perdido, mas fui me recuperando por causa das minhas filhas, a Maria Elisa e a Helena. Tive o privilégio de ter filhas boas, apesar dessa maldade do destino (chora). Foi um cochilo meu, idiota.
Folha - O sr. conheceu três dos maiores arquitetos deste século: Le Corbusier, Frank Lloyd Wright e Mies van der Rohe. Qual deles era o gênio?
Costa - O Corbusier. Era artista, filósofo e técnico. Desde o primeiro livro dele, ``A Caminho de uma Arquitetura", ele tinha umas páginas impressionantemente atuais, proféticas. Os outros eram talentosos, mas não tinham essa visão global.
Folha - O sr. parece distante de Niemeyer. Vocês brigaram?
Costa - Jamais. É que não cultivo amizade. Tenho pena de ser assim. Brasília foi uma coisa pessoal minha, não teve participação do Oscar. Ele é uma personalidade singular, que merece muito respeito. Nunca houve nenhuma nesga entre nós, só o afastamento.
Folha - Por que o sr. decidiu fazer o livro de memórias em formato heterodoxo, com cartas, projetos, crônicas, desenhos?
Costa - Não foi escolha. Simplesmente saiu assim. Chegou um dado momento em que senti a obrigação de dar o meu recado. Senão, eu morrendo, as interpretações dos meus atos, da minha vivência, poderiam ser erradas. Achei conveniente me antecipar. Só isso.
Reuni num livro coisas escritas durante a vida. Só a última página foi escrita especialmente para o livro. Tudo o mais foi uma compilação de sentido autobiográfico.

LUCIO COSTA - REGISTRO DE UMA VIVÊNCIA. Organizado por Maria Elisa Costa. Empresa das Artes-Universidade de Brasília, com o apoio da Fundação Banco do Brasil e Via Engenharia. 608 págs., R$ 100. Nas livrarias a partir de agosto.

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