São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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Trótski, Mandel e Tróia

O Muro de Berlim ruiu, as esquerdas ficaram órfãs e, segundo o presidente Fernando Henrique Cardoso, também burras. Na semana passada, com a morte do economista belga Ernest Mandel, dirigente da Quarta Internacional e um dos mais importantes teóricos do trotskismo, a mais órfã de todas as esquerdas ficou ainda mais órfã.
Trótski era o codinome do revolucionário russo Lev Davidovitch Bronstein, cujo grande rival na disputa pelo poder no PC era Josef Stálin. Após a morte do principal líder da Revolução, Lênin, em 24, Stálin tomou o poder e Trótski exilou-se. Foi a primeira orfandade.
Em 1940, na Cidade do México, Ramon Mercader, a mando de Stálin, assassinou Trótski a golpes de picareta. Foi a segunda orfandade.
De resto, grupos trotskistas nunca primaram pela convergência. Bastava reunir dois trotskistas e já havia duas ``tendências"; três trotskistas juntos e já haveria condições de ocorrer um ``racha". A cada racha, portanto, uma nova orfandade. A morte de Mandel talvez seja a última orfandade do trotskismo.
O fato de o chamado socialismo real ter-se revelado uma catástrofe e a sua alternativa trotskista jamais ter conseguido chegar ao poder em país nenhum não significa que a esquerda -entendida como a posição política que procura promover uma sociedade mais justa e igualitária- tenha chegado ao fim. É bem verdade que ninguém sabe ao certo para onde ela caminha, nem ela própria, mas segue caminhando.
Enquanto isso, firma-se no globo um neocapitalismo a um só tempo extremamente eficiente e perverso. Ganhos em tecnologia e de economia de escala, reengenharia, cortes de gastos, qualidade total, robotização, tudo contribui para trazer ao mundo novos e cada vez mais sofisticados e baratos produtos.
Um computador até há algumas décadas ocupava uma sala inteira e só podia ser obtido por governos ou instituições dispostos a desembolsar milhões de dólares por unidade. Hoje, equipamentos muito mais poderosos que os primeiros e que podem ser carregados numa valise custam alguns poucos milhares de dólares, se tanto.
Quando lançadas, as máquinas de calcular realizavam apenas as quatro operações e eram produtos para a elite. Hoje, calculadoras científicas movidas a energia solar são distribuídas como brindes.
Do outro lado da moeda, essa revolução da qualidade vem gerando uma enorme massa de excluídos. As indústrias demitem, as fazendas são mecanizadas, e os serviços não conseguem absorver a enorme massa de trabalhadores ``excedentes". Isso sem falar nas novas gerações que chegam anualmente ao mercado de trabalho.
O desemprego e os desequilíbrios dos países que mantêm algum tipo de seguridade social vão crescendo em ritmos assombrosos. Na Espanha, por exemplo, o índice de desocupação chega a 20%. Na Argentina a situação não é melhor, como revela o editorial abaixo.
O quadro é sombrio. No longo prazo, porém, não se pode descartar um cenário em que a produção de alimentos e insumos básicos seja tão grande que baste para alimentar e vestir toda a população do globo sem que todos, principalmente os mais desassistidos, precisem necessariamente trabalhar para sobreviver. Pode parecer um sonho de ficção científica, mas as potencialidades da engenharia genética aplicada à produção de alimentos não podem ser menosprezadas.
Mesmo que esse cenário mais otimista se materialize, o mundo terá de passar por uma grande revolução cultural para encarar os novos tempos. De fato, desde a ascensão da burguesia e especialmente depois da Reforma, desenvolveu-se uma cultura para o trabalho. Tudo o que é trabalho é valorizado. O sucesso financeiro é a marca da aprovação daquele Deus cujo nome vem estampado nas notas de dólares. Estar desempregado ou exercer o direito ao ócio é visto com maus olhos pelas sociedades industriais. Os excluídos chegam a ser responsabilizados eles próprios por sua situação precária.
As coisas nem sempre foram assim. Nas civilizações da Antiguidade e até nas sociedades feudais o que marcava o bom cidadão era justamente o fato de ele não precisar trabalhar. A palavra ``escola" vem do grego ``scholé", que significa literalmente ``ócio". Apenas os filhos dos cidadãos atenienses, que não precisavam suar para ganhar o pão de cada dia, podiam se dar ao luxo de receber uma educação.
Em Roma a situação não era diferente. A palavra ``negócio" vem dos radicais latinos ``nec" (não) e ``otium" (ócio). Com uma pitada de ironia, é como os patrícios se referiam à atividade daqueles que tinham de trabalhar para viver, os que não tinham o direito ao ócio -este sim o conceito positivo.
Chegar a níveis recordes de produção de excedentes que sejam distribuídos de forma justa e tentar reverter a alienante cultura do trabalho pelo trabalho como um fim em si próprio parece ser hoje o grande desafio para a esquerda.
Quanto a Trótski e Mandel, eles parecem ter acertado no diagnóstico e errado no prognóstico. O mundo de fato atravessa uma revolução permanente e global. Só que ela não é socialista, mas capitalista, e em seu sentido mais selvagem.
Para os órfãos da esquerda que se recusam a abandonar os dogmas marxistas-leninistas-trotskistas resta o belo e paradoxal verso de Vergílio em que o troiano Enéias lamenta a Dido os infortúnios de seu povo: ``Fuimos Troes, fuit Ilium" (Já não há troianos, nem Tróia).

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