São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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carta às mulheres, amém

MARILENE FELINTO

Era bom que houvesse alguma ligação entre o recente pedido de desculpas do papa João Paulo 2.o às mulheres e a heresia da cantora pop irlandesa Sinéad O'Connor, que rasgou em público uma fotografia de sua santidade em 1992.
Quem sabe assim a carta do papa soasse menos atrasada no tempo -foi a primeira carta da Igreja às mulheres-, repercutisse nos ouvidos desinteressados de fiéis e infiéis fêmeas, sobre quem, em grande parte, o Vaticano e a Igreja Católica não exercem mais qualquer impressão efetiva, salvo a imagem de um mundo distanciado, coberto de ouro.
João Paulo 2.o defendeu o feminismo e pediu desculpas por ter a igreja oprimido as mulheres, impedindo-as de progredir. Mas continua condenando o aborto e proibindo o sacerdócio feminino. Quer dizer: no que se refere ao destino de nosso corpo, continuamos, para o cristianismo, domínio do homem, pedaço desenvolvido a partir de uma costela sua. E seguimos excluídas da função de distribuir os dons sagrados, de ministrar o culto divino.
O que leva os homens cristãos a acreditarem que são eles os mensageiros ou representantes de um Deus na terra? De onde vem essa vaidade de se considerarem assim sábios?
Será talvez a maneira que encontraram de engendrar no corpo do macho um pouco do mistério da criação -engenho por natureza feminino, gerado no interior do corpo da mulher, que o exibe com exuberância em seu ventre de grávida. Na falta da gravidez, o macho escolheria vestir-se, cobrir-se de batinas e mantos clericais que o transformem no instrumento privilegiado para propagar a revelação divina.
Assim, padres e pastores (e rabinos e aiatolás) defenderiam a unhas e dentes a exclusividade masculina no sacerdócio, não por simples machismo mas por razões complexas, enraizadas em milênios de história -as mesmas razões que os levam à guerra por um pedaço de Jerusalém, por uma parte da basílica da Natividade em Belém de Israel, construída sobre a manjedoura onde nasceu Cristo, mas dividida entre católicos e ortodoxos, judeus e árabes.
A carta do papa dificilmente terá como resposta a confissão de fé ou a conversão de mais fêmeas para o rebanho. Mulher e religião continuam conjunção incompatível, a não ser que se divinize ou negue a identidade e a sexualidade feminina: é o caso das freiras, das santas, das muçulmanas de rosto coberto.
Tanto nos cultos de certas igrejas evangélicas quanto nas orações das mesquitas, mulheres continuam separadas de homens. Nos cultos da evangélica Assembléia de Deus, por exemplo, homens sentam-se de um lado, mulheres do outro.
Em seu protesto contra o papa, Sinéad O'Connor disse ``combatam o verdadeiro inimigo", atribuindo à Igreja Católica Romana um poder que ela já não tem, afinal vem perdendo a própria essência de seu significado: o catolicismo. Já não se adapta ``às necessidades dos homens de toda parte". ``Católico" vem do grego e quer dizer ``universal".
Ao rasgar a foto do papa, O'Connor provavelmente repudiava menos o religioso, o vigário de Cristo e primaz da Itália, do que o soberano do Vaticano, o patriarca do Ocidente.
A jovem cantora foi condenada injustamente. Apenas não disse amém. Apenas cometeu uma heresia, palavra que também vem do grego e significa apenas ``escolha".

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