São Paulo, domingo, 23 de julho de 1995
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a virada de Vera

MURILO GABRIELLI

Olimpíadas de Los Angeles, 1984. Vera Mossa e a seleção feminina de vôlei enfrentam o time dos EUA.
Após vencerem os dois primeiros sets, acabam perdendo os três seguintes, a partida e a chance de, pela primeira vez, incluir a seleção brasileira na elite do esporte.
Começava a nascer na cabeça da torcida a imagem de uma geração que não conseguia vencer. Um derrotismo nacional atávico associaria esse insucesso ao contemporâneo malogro da campanha das diretas já, à permanente crise econômica nacional, à incapacidade de dar certo e ascender ao Primeiro Mundo.
Rio de Janeiro, 1990. Sem time -a maioria das equipes de vôlei fora desativada no Plano Collor- e sem oportunidades na seleção, Vera Mossa decide embarcar para a Itália, carregando a vontade de conhecer o "campeonato mais organizado do mundo" e o estigma da derrota.
Ribeirão Preto, 1995. Em meio à euforia do Plano Real, Vera Mossa, 30, retorna ao país após o vitorioso desterro para disputar pelo time do Trasmontano-JC Amaral um campeonato brasileiro que lota ginásios.
Apesar da derrota de 1984, Vera viveria momentos de estrelato nos anos seguintes. Posaria -vestida- para a revista "Playboy, participaria do filme "Rock Estrela" (em 1986), viraria símbolo sexual.
Campanhas apenas regulares no mundial de 1986 e nos Jogos Olímpicos de 1988, porém, transformariam a antiga dúvida sobre a falta de preparo das jogadoras para a vitória em verdade inquestionável.
Os ventos de "modernidade" do governo Collor colocariam uma pá de cal na questão. Além de inviabilizarem o patrocínio aos clubes -"só Collor conseguia fazer esporte na época", Vera ri amarelo-, tratavam como agourento o que fosse antigo.

Musas antigas
Antigas -e agourentas, portanto- eram as jogadoras de vôlei da década de 80. Era preciso substituí-las. A transição veio abrupta.
Para técnicos e dirigentes do esporte, um canto mais alto se alevantava. Eram as então jogadoras juvenis, bicampeãs mundiais na categoria, guindadas à condição de titulares do time principal.
As antigas musas deveriam calar.
"Elas tinham essa imagem vitoriosa", diz Vera. Ela critica a forma "pouco natural" com que a troca de guarda foi feita. "Quando deixei de ser convocada, em 1990, tinha 25 anos, a mesma idade que a Ana Moser ou a Márcia Fu (jogadoras da atual seleção) têm hoje."
Vera, é claro, lista razões objetivas para as derrotas do seu tempo de seleção. "Treinávamos muito e jogávamos pouco. Tínhamos pouco intercâmbio com outros países."
Não há para ela nenhum profundo trauma psicológico ligado ao jogo contra os EUA em 84. "Nosso time simplesmente não era melhor."

Tropeços
O caminho da nova geração rumo à glória não foi desprovido de tropeços. Mantiveram-se a princípio os resultados das antecessoras -ou seja, oscilava-se do quinto ao oitavo lugares nas competições importantes.
Foi no ano passado, nas mão do técnico Bernardinho (companheiro de Vera por dez anos), que a seleção saltou para o primeiro time do vôlei mundial, ao conquistar o Grand Prix (torneio anual que reúne as melhores seleções do planeta).
Enquanto isso, Vera fazia nome na Itália. Fez duas temporadas pelo time de Perugia (cidade no centro do país) e três pelo de Sumirago (a 30 km de Milão). Foi duas vezes vice do Campeonato Italiano, ganhou uma Copa da Itália e uma da Europa.
Durante o exílio, não foi apenas a sorte de Vera que virou. Mudaram muito, também, Itália e Brasil.
A crise européia e a operação "mãos limpas" (na qual foram presos políticos, empresários e funcionários da Justiça ligados à máfia) fizeram fugir patrocinadores e empobreceram a liga da Bota.
No Brasil, ao contrário, a estabilização econômica, os bons resultados das seleções e o repatriamento de alguns ídolos criaram torneios de vôlei rentáveis e competitivos. Os salários -antes muito mais altos na Itália- se igualaram. "Aqui estão até um pouco melhor", segreda Vera.
O afastamento tornou grande a expectativa de Vera pela reintegração. Ela se diz razoavelmente inteirada do estágio do vôlei no país. "Em 94 acompanhei as finais da liga nacional masculina e feminina."
Das jogadoras novas, conhece só as que enfrentou antes de partir. Das antigas colegas, manteve contato com poucas. "A Isabel eu vejo. É uma superamiga." Há cinco anos não encontra Jacqueline, que morou nos EUA, jogando vôlei de praia.

Voz rouca
O tempo ajudou a que se "perdoasse" a geração de Vera. A voz rouca de muitas entrevistas cedidas antes desta atesta: o prestígio voltou com ela.
Também o time nacional não mais esnoba as antigas militantes. A ex-companheira Sandra, distante da seleção desde 1988, voltou a ser chamada na última convocação.
Vera, porém, descarta seguir o mesmo caminho. "Quero fazer uma coisa de cada vez. Preciso organizar minha vida e a seleção exige muito sacrifício, muita motivação." Segundo ela, o fato de o técnico ser o homem de quem se separou no ano passado não tem peso nessa decisão.

"Fair play"
Vera não se irrita, nem se constrange, ao ser rotulada de musa.
"Se me acham bonita, agradeço. É um complemento ao reconhecimento como jogadora. Mas se você for linda e jogar mal não vai ser musa."
Ela considera "natural" o título. "Tanto, que ele continua a existir: agora são a Ana Paula e a Leila."
A jogadora não sabe precisar, contudo, a origem do rótulo. "Não fomos nós que criamos." Se a origem é controversa, a chancela é fruto de um mal-entendido.
Na mesma fatídica Olimpíada de Los Angeles, Vera recebeu o prêmio de "fair play" (literalmente, jogo limpo) do vôlei, outorgado a atletas fiéis ao espírito de "o importante não é vencer, mas competir".
"Na verdade, nem prêmio era. Ganhei rosas, e um certificado foi enviado à confederação brasileira."
Graças a algum incauto tradutor, o título de "a que joga limpo" virou "a mais bonita". No imaginário nacional, novamente o mundo civilizado se rendia à beleza de musas latinas.
Se não agradava tanto aos estrangeiros -como aqui se supunha- pela aparência, fazia-o pelo jogo.
A temporada italiana poderia se prolongar indefinidamente -convites para ficar recebeu. Na cabeça de Vera, porém, sempre houve um prazo fixo para acabar. "Era uma experiência." Continua, no discurso habitual do brasileiro no exílio: "Sentia falta de tudo."

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