São Paulo, terça-feira, 25 de julho de 1995
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A burrocultura inflacionária

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

A desindexação tem passado por trancos e barrancos que fazem ver que o caminho não é plano nem asfaltado. A medida provisória que a inicia já sofreu impugnações judiciais no Supremo Tribunal Federal, aguardando-se um pronunciamento do pleno sobre a liminar concedida por seu presidente.
Por outro lado, a arregimentação de forças políticas, quer partidárias, quer corporativas, quer classistas, mostra que o embate dos posicionamentos ainda provocará explosões tão grandes como a do arsenal da Marinha.
Nas disputas sobre o assunto, há um ponto que merece reflexão. Embora difícil de se separar na ``cultura inflacionária" ainda prevalecente, há de se entender que correção monetária e reajuste de preços e valores não são necessariamente termos juridicamente coincidentes (isto é, não estão submetidos ao mesmo regime jurídico).
Reajuste é um neologismo brasileiro que significa um pleonasmo, isto é, reajustar é ajustar outra vez. Quem ajusta um preço, por exemplo, traz o valor, etimologicamente, ao seu centro justo (a-justar). Quem reajusta retoma o ajuste anterior e o adapta ao ponto justo.
Obviamente é impossível imaginar-se que num ajuste e num reajuste se deve prescindir da idéia de acordo, conciliação, do que resulta o encontro ou reencontro do ponto justo. Na correção monetária, ainda que conteúdo de uma cláusula contratual, estamos diante de um dado ``objetivo", fixado por critérios oficiais ou paraoficiais, que formulam uma variação no valor da moeda.
A confusão dos dois conceitos torna-se significativa quando a medida provisória, reiterando a lei do Plano Real, disciplina a periodicidade de 12 meses para ``reajuste ou correção monetária" de contratos de longo prazo. Se o objetivo for desindexar, não se nega sentido a esse ``congelamento" do valor monetário por um ano. Difícil, ao contrário, é entender o mesmo ``congelamento" para reajustes, tendo em vista o mesmo objetivo.
Reajustes têm a ver com fórmulas que refletem, a cada momento de um pagamento combinado, uma variação de preços de insumos, condições de oferta e demanda, variação cambial, serviços etc. que compõem um valor produzido pela própria concorrência.
Ao contrário da correção monetária, que é tema de um sistema juridicamente dependente do Poder Público, os reajustes são assunto propriamente da competição privada. Assim, ``congelar" por um ano a primeira faz sentido como política monetária do governo, mas fazer o mesmo com os segundos é produzir uma intervenção do Estado no domínio econômico cujos efeitos acirram a chamada cultura inflacionária.
Congelar por 12 meses a correção monetária, deixando às partes a escolha do índice, vem, pois, ao encontro de uma política que visa a desmontar a automaticidade do repasse de uma inflação para preços. Evita-se, com isso, uma espécie de globalização do efeito inflacionário nos contratos, de uma forma uniforme e automática, porque, em princípio, esses índices tendem a ser objetivos e gerais. Sua disciplina jurídica é um assunto de Direito Público no interior de um contrato (privado).
Contudo, congelar pelo mesmo prazo reajustes conforme fórmulas que espelham variações resultantes da oferta e da procura, isto é, do próprio mercado concorrencial, é disciplinar um assunto típico de Direito Privado e, na prática negocial, pedir aos contratantes que façam avaliações de comportamento de preços (não do valor da moeda) com antecedência mínima de um ano.
Essas avaliações acabam por encarecer os produtos, induzindo um efeito oposto ao que se objetiva, pois alimentam a inflação.
Do ponto de vista jurídico, tornar igualmente nula a estipulação tanto do reajuste, como de correção monetária, por periodicidade inferior a um ano, é afinal introduzir um desequilíbrio na equação econômico-financeira dos contratos. Como objetos de intervenção distintos, mas tratados como se iguais fossem, produzem uma indesejável confusão entre a matéria de Direito Público e Privado, levando aos tribunais fartas controvérsias e dissensões.
O mesmo problema existe em relação aos salários, quando se proíbe estipulação de ``reajuste ou correção salarial automática vinculada a índice de preços". A confusão acaba por misturar medidas monetárias com medidas de mercado. Dessa confusão nascem protestos, propostas de reindexação monetária em meio a discussões sobre avaliação de produtividade etc.
A esperança, por fim, é que o bom senso político e a sensibilidade jurídica possam iluminar a orientação econômica do problema.

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