São Paulo, sexta-feira, 28 de julho de 1995
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A fumaça das velas

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Recebo os CDs com as gravações de Orlando Silva na fase da RCA Victor, consideradas históricas pelos entendidos. Grande parte do melhor repertório de nossa música popular está registrada nesse lançamento da BMG, com excelente apresentação de Ruy Castro.
Pretendo comentar o fenômeno que foi o cantor das multidões, ex-trocador de ônibus e menino de recados. Por conta de sua fase de ouro (1935-1942), ele continua cultuado até hoje como o maior cantor brasileiro de todos os tempos.
Por ora, vou ficar na parte adjetiva do lançamento. Com os modernos recursos de limpeza do som, com as possibilidades da gravação masterizada, pretende-se recuperar os velhos discos de 78 rotações. De Enrico Caruso a Carmem Miranda, o mercado já está oferecendo a pureza original e o encanto das incisões primitivas.
Tudo bem. Os japoneses gastaram US$ 10 milhões para recuperar as cores da Renascença que Michelangelo deixou no teto da Capela Sistina. Houve quem gostasse. Mas quando Goethe, Byron e Stendhal se ajoelharam sob aquele teto, eles não estavam dando bola para as cores renascentistas. Aceitaram a obra tal como ela estava, com as corrupções do tempo, a fumaça das velas, a tumultuada história que se desenrolou sob o monumental afresco.
A arte incorpora o tempo. E por isso o revela -talvez seja essa a sua melhor definição: guarda e revelação do tempo.
Volto a Orlando Silva. Há tempos, sem recursos técnicos apreciáveis, passei para fita algumas gravações de 78 rpm que conservava, a maioria delas da fase RCA. Pude assim ouvir a versão masterizada e, logo em seguida, a poluída gravação antiga.
Por Júpiter! Se é verdade que nos 78 rpm o som está abafado, se não percebo com nitidez as sutilezas do arranjo e da orquestração, tenho nas antigas bolachas aquilo que os pernósticos chamam de ``pátina" do tempo. Talvez não chegue a gostar. Mas respeito ``a fumaça das velas" que se impregnou lentamente no teto da Sistina, fazendo do tempo a testemunha e o cúmplice da obra de arte.

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