São Paulo, sábado, 29 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Brasil procura superar "solução final"

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um projeto de lei está para ser enviado pelo Ministério da Justiça ao Congresso, reconhecendo a morte e estabelecendo indenização aos familiares dos desaparecidos. Mas uma pergunta tem sido evitada: por que, afinal, existem desaparecidos políticos no Brasil?
Durante o regime militar, os exilados, no exterior, faziam barulho; a imagem do país poderia ser prejudicada, atrapalhando o andamento do "Milagre Brasileiro", que dependia da entrada de capital estrangeiro.
No Brasil, o Exército perdia o combate contra a guerrilha: assaltos ("expropriações") a bancos, bombas em quartéis, e cinco guerrilheiros, comandados pelo ex-capitão Carlos Lamarca, rompem o cerco de 1.700 soldados comandados pelo coronel Erasmo Dias, no Vale do Ribeira. Estava claro que, para combater a chamada "subversão, o governo deveria organizar um aparelho repressivo paralelo, com total liberdade de ação. É criado o DOI-Codi.
Jornalistas, compositores, estudantes, professores, atrizes, simpatizantes e guerrilheiros são presos. Muitos torturados. Passa a ser fundamental para a sobrevivência das próprias organizações de guerrilha soltar "companheiros" ou simpatizantes presos. A partir de 69, começam os sequestros de diplomatas. O embaixador norte-americano é trocado por 15 "companheiros" presos. O cônsul japonês de São Paulo é trocado por cinco. O embaixador alemão "rende" 40 libertados. Depois, a vítima é o embaixador suíço: 70 presos são pedidos em troca.
Um preso solto podia contatar organizações de outros países, relatar o que acontecia nas prisões brasileiras, ou até mesmo voltar para combater o regime; o ex-deputado José Dirceu e o ex-sargento Onofre Pinto, na lista dos desaparecidos, chegaram a sair e voltar clandestinamente ao país.
Lamarca justifica, numa entrevista publicada no Chile: "Os sequestros continuarão. Enquanto o governo se utiliza da tortura, os sequestros serão realizados por ser, no momento, a única forma de liberar os companheiros. Se a tortura é uma instituição que a repressão não pode prescindir, o sequestro também o será. Os diplomatas estrangeiros são capazes de conviver com o governo que tortura, portanto, podem conviver conosco apenas alguns dias."
Para os agentes da repressão, passa a ser prioritária a eliminação e o desaparecimento de presos. O ato é consciente: um extermínio. Encontraram a "solução final" para os opositores do regime, largamente utilizada pelas ditaduras chilena, a partir de 73, e argentina, a partir de 76; o Brasil foi dos primeiros países a sofrer um golpe militar inspirado nas regras estabelecidas pela Guerra Fria, e uma passada de olho na lista de desaparecidos brasileiros revela que a maioria desaparece a partir de 70.
Se no Brasil a idéia da "solução final" tivesse sido aventada antes, não seriam apenas 150 pessoas, mas, como no Chile e na Argentina, milhares. E os considerados "inimigos" do regime, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Paulo Francis, a redação do ``Pasquim", as atrizes Bete Mendes e Dina Sfat e o atual presidente da República poderiam ter sido eliminados, como seus colegas chilenos e argentinos foram.
O tema, portanto, não está restrito a uma centena de famílias. Quando leio na edição de "O Globo" da última quarta-feira que "uma fonte militar de alta patente" diz que os ministros não vão se opor ao projeto da União, mas "temem que essa medida desencadeie um processo pernicioso à nação", me pergunto se os danos já não foram causados nos anos 70.
Existem desaparecidos e desaparecidos, dos que combateram no Araguaia aos que morreram nos porões da rua Tutóia e da Barão de Mesquita, dos que pegaram em armas aos que apenas faziam oposição; como meu pai, que não era filiado a qualquer organização, preso em 71. Cada corpo tem uma história: uns foram enterrados numa vala comum do Cemitério de Perus, outros foram deixados na floresta amazônica, uns decapitados, outros jogados no mar.
O projeto do governo é justo, e pode não satisfazer a todos. Falando em nome da família Rubens Paiva, torço para que esse projeto seja aprovado, agradeço a disposição do governo Fernando Henrique em recolher os desaparecidos, peço paciência aos descontentes e sugiro aos ministros militares que pesquisem seus arquivos, discutam o tema e se sintam convidados a ajudar a nação a superar este trauma.

Texto Anterior: Exército veta investigação sobre mortes
Próximo Texto: Governo recebe familiares
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.