São Paulo, sábado, 29 de julho de 1995
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Elegia para o comunismo defunto

RUBENS RICUPERO

No afã de fazerem esquecer o passado, os ex-comunistas italianos, reunidos em recente congresso ``temático" em Roma, foram impiedosos com os velhos símbolos. O azul expulsou da sala o vermelho, as bandeiras com a foice e o martelo cederam lugar a fotos gigantes em que duas crianças constroem com blocos de madeira um futuro ``seguro e normal" para a Itália.
Será talvez uma astuta jogada de ``marketing" eleitoral, indispensável para expressar a mudança e a ruptura com o passado. Não se pode, porém, deixar de perguntar quanto da força do velho comunismo italiano e do atual Partido Democrático da Esquerda (PDS) não vinha precisamente dessa mística revolucionária de Gramsci e Togliatti, de Berlinguer e até do socialista Pietro Nenni, líder da Brigada Gabribaldi na Guerra Civil espanhola?
Lembro, criança nos anos 40, o fascínio que sentia pelas aventuras dos comunistas da clandestinidade e da Resistência, pelos mártires como Ernst Thaelmann, torturados até a morte pela Gestapo, pela defesa de Dimitrov no processo do incêndio do Reichstag.
A tradição carbonária do início do século 19 revivia nas missões misteriosas dos agentes do Komintern que povoavam as páginas de ``Do Fundo da Noite", de Jan Valtin, emprestado da Biblioteca Municipal de São Paulo. Como apagar da história emocional deste século o ``pathos" das vidas revolucionárias narradas por Koestler, um dos contemporâneos do Komintern?
Pensava nisso tudo a propósito do congresso do PDS quando me chegou do Brasil a devastadora notícia da morte de um desses velhos militantes, para mim o mais querido e próximo. Nascido no Brás, na rua da Alegria, de família de imigrantes pobres, chegou como autodidata a contador e presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo.
Dirigente comunista já em 1935, viveu a experiência da clandestinidade e da prisão durante a repressão do Estado Novo. Por pouco não foi fuzilado no presídio Maria Zelia, numa execução camuflada em fuga frustrada, um dos nefandos antecedentes do Carandiru que a covardia das anistias brasileiras sepultou no esquecimento.
Sua idealista fé na possibilidade de uma sociedade menos injusta deixava entrever que nele o materialismo dialético nunca passara de superficial ferramenta intelectual para compreender e mudar o mundo. Sua vida de abnegação, a renúncia até tarde ao casamento, a fim de poupar a uma esposa a angústia e os temores de que não pôde preservar a mãe e as irmãs, sempre me fizeram pensar na vocação dos cristãos da catacumba para viverem a virtude em grau heróico, como quer a definição de santidade.
Contou-me, certa vez, como começara a deixar a militança. Foi na prisão, onde não suportou assistir ao tratamento surdo de silêncio e hostilidade que o partido decretaria contra um dos companheiros culpado de ter afrouxado sob tortura.
A compaixão e sua profunda humanidade se rebelavam contra a sentença, ainda que justa. Desprovido de vaidade, culpava a própria fraqueza por não conseguir elevar-se à altura sobre-humana do revolucionário intransigente, ideal supremo do qual falava com reverência.
Afastou-se do partido sem romper com ele. Descobria o que já lhe andava no fundo da personalidade, a não-violência, o pacifismo, a caridade. Tornou-se espírita, em parte, acho, por não poder conceber a possibilidade de condenações eternas. Após 1945, converteu-se em presença constante e benfaseja junto a milhares de pessoas humildes que ajudou a aprender a viver e a sofrer.
A influência dos seus conselhos e dos seus livros foi decisiva em minha vida. A pequena biblioteca que reuniu no esquálido bairro operário foi minha primeira janela para o mundo da leitura. Embora afastado da militância pela recusa da violência, conservou-se fiel à cerrada argumentação estalinista.
Por isso, discutíamos muito sobre a URSS, o pacto Molotov-Ribbentrop, os preconceitos antiintelectuais do Komintern. Aos meus olhos, nunca deixou de aparecer como a mais pura encarnação daquilo que os ex-comunistas modernizadores correm o risco de renegar, a vocação do verdadeiro revolucionário, não o ``aparatchik" triunfante e cruel dos Gulags e dos processos de Moscou, mas o militante operário anônimo, os ``partigiani" e os mártires da repressão fascista.
Não sei se ele chegou a ler meu primeiro artigo sobre o congresso do PDS e ignoro como teria reagido à reviravolta do comunismo num país a que ele e eu nos sentíamos ligados pela comum tradição familiar. Teria gostado, acho, da ênfase no diálogo com o adversário, do elogio que, a exemplo de Bobbio, o líder do PDS fez da ``mitezza", a brandura, a bondade de alma, ele que se inspirava no exemplo daquele que era ``manso e humilde de coração".
Penso, sobretudo, que também não terá acreditado que o naufrágio do comunismo real represente a conformidade com a injustiça e com a desigualdade. Essa atitude, essência da mística revolucionária, não morre com o comunismo, como não desaparece com a morte de um homem excepcional que a encarnou numa longa vida, meu querido tio Ignácio Giovini, a quem dirijo o comovido adeus de todos os que nele aprenderam a ver o exemplo de que é possível ser fiel à luta pela justiça e à eterna utopia da igualdade sem perder a humanidade e a sabedoria do coração.

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