São Paulo, sábado, 29 de julho de 1995
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Desindexação e corporativismo

SANDRA STARLING

Em um seminário realizado em Brasília, em novembro de 93, o professor Rainer Erd, da Universidade de Darmstadt (Alemanha), ao abordar o papel da livre negociação entre capital e trabalho para o desenvolvimento alemão após a Segunda Guerra Mundial, afirmou que a livre negociação ``é uma instituição central do capitalismo industrial ocidental, cujo significado somente é comparável com o sufrágio universal".
Esta assertiva, tendo por referência um modelo de relações industriais que mantém o Estado afastado e protege o trabalhador contra a dispensa imotivada, sugere algumas reflexões neste momento em que o governo edita, a título de estímulo à livre negociação, a medida provisória da desindexação de salários.
O primeiro aspecto que salta aos olhos é o fato de, à guisa de fortalecer as tratativas diretas entre empregados e patrões, o poder Executivo ter restringido as negociações à data-base, impedido a estipulação de cláusula de reajuste automático, proibido a fixação de produtividade por convenção coletiva e equiparado legalmente os aumentos espontâneos a antecipações salariais.
Não satisfeito com tamanha intervenção, o governo atribuiu compulsoriedade à mediação do Ministério do Trabalho e aboliu a fase de conciliação nos dissídios coletivos, com a novidade de apresentação de ``propostas finais", desde a instauração da ação perante a Justiça do Trabalho.
Assim, o poder normativo da Justiça do Trabalho, em si uma negação da livre negociação, se torna ainda mais impeditivo à composição autônoma entre capital e trabalho. Embora pareça paradoxal, o comportamento assumido pelo governo reforça o corporativismo imperante nas relações trabalhistas desde o Estado Novo.
O corporativismo, enquanto ideário político, afirma só ser possível -e necessária- a realização do ``interesse geral de uma nação" por sua corporificação, por meio de um Estado forte, embutido da coesão de toda a sociedade, arbitrando eventuais conflitos entre os agentes sócioeconômicos.
Entretanto, o corporativismo passou a ser tomado por seus efeitos ou alguns de seus elementos constitutivos. Passou a ser confundido com a insistência de um certo sindicalismo de só ``pensar em torno do próprio umbigo", desconsiderando as repercussões de ordem geral, do que se reivindica e de quando se reivindica.
Além disso, tornou-se lugar comum chamar de corporativista toda uma vertente do movimento sindical que não se desvencilha da tutela estatal, elegendo-a, muitas vezes, como centro de suas lutas trabalhistas.
Ora, o sindicalismo míope e tutelado decorre do enquadramento sindical imposto pelo Estado, adocicado por expedientes de cooptação, com o nítido propósito, para consecução do discurso de ``interesse geral da nação", de pulverizar a organização dos trabalhadores. Esta só é concebida por categorias previamente definidas pelo próprio Estado.
Desvanece-se, desta forma, o sentimento de classe, ante seu potencial de conflitos. Isto para que o Estado possa chamar a si a tarefa de controlar as relações de trabalho. Para que o ``interesse nacional" prevaleça, capital e trabalho devem integrar-se, harmonicamente, ao Estado, corpo da nacionalidade.
Este, representando o interesse maior da Nação, traduz, em seu conjunto de ações, a justa composição entre patrões e empregados, ``guardando adequação com o interesse da coletividade".
Infelizmente, esta realidade não se altera com a medida provisória da desindexação. A MP mantém o que de mais abominável existe na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); a idéia-força de que o poder público sabe o que é melhor para a sociedade civil e de que esta é incapaz de gestar, responsavelmente, formas de autogoverno. Ou seja, mantém acesa a chama do velho e surrado corporativismo.
Nesta oportunidade, não custa relembrar a Fernando Henrique as palavras do sociólogo alemão Theodor Geiger que, em 1949, pontificou que ``a livre contratação coletiva possibilitou a institucionalização do conflito de classes. Como resultado, a livre negociação, de colisões entre sindicatos e patrões, tornou-se uma instituição para a pacificação de ambos".
Umas pitadas de social na economia de mercado até que não fariam mal no ninho dos tucanos.

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