São Paulo, sábado, 29 de julho de 1995
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Deus é hoje o mais obsoleto dos assuntos

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma moça reuniu (e a Bertrand traduziu) ensaios de Aldous Huxley sobre Deus e por isso me telefonaram do jornal. Como estive com Huxley durante a visita que nos fez em 1958, fiquei na pauta dos entrevistadores quando ele é lembrado.
Só reparo que, de algum tempo para cá, há uma personagem da qual os entrevistadores não se lembram: do mencionado Deus, exatamente. Querem saber a respeito de Huxley e dessa esquisitice dele, de escrever sobre Deus. Mas Deus está fora de cogitação.
Digo mais: antigamente, quando me entrevistavam sobre as coisas em geral, com mais tempo e espaço, lá pelas tantas me perguntavam se eu ``acreditava em alguma coisa". Perguntavam assim porque já era meio cafona e disparatado falar n'Ele. Agora, porém, o assunto está morto e enterrado. Ninguém quer mais saber se ainda acreditamos ou se jamais chegamos a crer em tal abstração, Deus.
Acho uma falta de bons modos esse total cancelamento da divindade. Pessoalmente, além de ter tido ocasião de ler muita coisa sobre Ele e sobre a possível sobrevivência da alma, fui educado num tempo em que menino brasileiro estudava, ainda no primário, História Sagrada e em geral tinha, como eu tive, uma tia carolíssima.
A idéia de religião foi portanto bem-sovada e estabelecida dentro de mim: a vida era um vale de lágrimas no qual passávamos por provações que iam dizer, de acordo com nossa piedade ou rebeldia, se íamos, depois da morte, para o céu ou para o inferno, o mais provável sendo o céu, depois de um período de limpeza dos pecados no purgatório, uma espécie de lavanderia intermediária entre as alturas azuis e as profundas do inferno.
Na adolescência deixei orgulhosamente de crer, mas, para dizer a verdade, nunca mais parei de temer aquilo em que um dia acreditara. Nosso grande poeta João Cabral já disse que perdeu qualquer fé no céu, mas ainda tem um medo que se pela do inferno.
Eu continuei a ter medo dos dois, pois temo também o céu da minha infância, eu de camisola e cachos, entre anjos, tocando harpa. Em suma, perdi a fé, mas um pouco como quem assobia no escuro para espantar o medo. E esse assobio, em mim, assumiu a forma do mergulho em livros sobre o assunto, mais em inglês do que em francês, acho que porque em francês me repugnava o ranço católico da minha formação de menino.
Mesmo assim, nunca me esqueci da leitura de um livrinho francês de um bispo (quem era?) que traçava perfis de grandes intelectuais que muito haviam sofrido com a perda da fé. O livro se chamava ``A Dúvida e Suas Vítimas".
Mas em inglês, ou em tradução inglesa, li uma montanha de livros a respeito, desde as ``Variedades da Experiência Religiosa", de William James, e os livros sobre misticismo de Evelyn Underhill, às versões de Suso e Meister Eckart, sem falar na História de Toynbee, e em seus estudos sobre o budismo, e nos romances, estudos e ensaios de Aldous Huxley sobre religião, que todo o mundo leu, ou pelo menos conhece de ouvir falar.
Quando cheguei à leitura, no original, dos deslumbrantes textos de Santa Teresa de Ávila e San Juan de la Cruz (que li em Londres, durante a guerra, sentado numa daquelas cadeiras de aluguel de Regents Park) eu me sentia como um canteiro prestes a dar flor. Se jamais alguém viu de fato, cara a cara, a face de Deus, foram esses dois centroavantes do mais ardente misticismo que já se praticou na Terra.
Como neste artigo e a partir do ``Bardo Thodrol" tibetano tenho que falar de novo em Aldous Huxley, vou mencionar antes o irmão dele, Julian, biólogo, evolucionista. Julian deixou um livro de ensaios, ``Religião sem Revelação", que li também há muitos anos e que encara a religião do ponto de vista puramente agnóstico. Nada do misticismo e das drogas do irmão literato.
Jamais saberemos coisa nenhuma sobre Deus, acha Julian. Mas é claro que se o homem veio do símio e chegou ao Buda e a Descartes, ou mesmo à família Huxley, pode refinar-se indefinidamente. Uma religião leiga e longa. Evolucionista. Um credo para ``gentlemen", gente sem pressa e sem angústia.
Quanto ao irmão Aldous, ou a Arnold Toynbee, eles criaram uma ponte fundamental entre o cristianismo ocidental e as religiões do Oriente. Se ainda existe alguém interessado em tais assuntos, recomendo os estudos de Toynbee sobre o budismo Mahayana. E todos os livros de Aldous Huxley, naturalmente, pois ele não se limitou à pregação e divulgação da crença tibetana.
Propôs que chegássemos à experiência física da revelação religiosa mediante o uso de drogas: a chegada a Deus pela farmácia especializada. Huxley tomou mescalina literalmente até o dia em que morreu, sexta-feira, 22 de novembro de 1963, mesmo dia em que Kennedy foi assassinado.
Huxley pediu sua última dose de LSD a sua mulher, Laura Archera, para abrandar sua dor de câncer e morreu. Pela minuciosa prática divulgada no ``Bardo Thodrol", quem, depois de morrer, não ceder ao doce apelo de aniquilamento que lhe faz o não-ser azul, transformando-se em pura energia de amor, será condenado à reencarnação. Vai recomeçar de novo toda a estopada da vida.
Esse apelo do não-ser tibetano é descrito com grande brilho literário no melhor romance de Huxley, ``Time Must Have a Stop", ``O tempo Deve Parar".
Mas é tempo, isso sim, de parar com esta lengalenga religiosa que o moderno leitor da Folha deve estar achando um porre, não de mescalina mas de chateação mesmo. Peço-lhe, porém, ainda um momento de paciência para contar o destino que teve meu exemplar do ``Bardo Thodrol", em sua tradução inglesa.
Ele pegou fogo com Clarice Lispector. Como numa pira sagrada. Eu tinha emprestado o ``Bardo" a Clarice e Clarice certa vez adormeceu com um cigarro ainda aceso no cinzeiro da mesa de cabeceira.
Pois Clarice acordou em chamas e o livro ardeu com ela. Pelo resto da vida Clarice guardou as marcas do fogo nos dedos finos. Ela não se lembrava bem, mas possivelmente o último livro que tivera nas mãos tinha sido o ``Bardo", na sua capa verde, com ígneas folhagens douradas. Nem Huxley se consumiu tão perto do seu livro santo.

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