São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Os meninos-zumbis de São Paulo

LUÍS NASSIF

Eles saíram das profundezas, espalharam-se pelo início da avenida Consolação, pelas imediações da Maria Antônia, e foram ocupando espaços no velho centro bancário de São Paulo, como um exército de zumbis.
Era impossível saber se eram homens ou mulheres. Tinham a assexualidade dos cadáveres. Jovens, eram sem dúvida, vergando macabros uniformes dos condenados à morte.
Os corpos eram tomados de uma fuligem que parecia cravada na pele, própria dos habitantes das profundezas. As faces eram macilentas, os cabelos duros de sujeira e os olhares vagos. Por dentro, o crack possivelmente já tinha devorado mais da metade de seus organismos de crianças desnutridas.
A maior parte não denotava disposição para assaltos. Pareciam mais personagens de filmes de ficção classe B dos anos 50, aproximando-se lentamente dos transeuntes pedindo dinheiro e balbuciando palavras incompreensíveis.
Mendigos amadores e profissionais que frequentam a região de repente desapareceram. Consta que foram ameaçados. Mais provável é que tenham se tomado do pânico, de quem se defronta com cadáveres.
Os meninos-zumbis cometeram violências indescritíveis no cotidiano dos habitantes do centro. Muito menos pelos assaltos, muito mais por sua presença incômoda. Quando invadiam cafés bem montados do centro, atrás de moedas para financiar o crack, tinham a capacidade de deixar a todos sem fome e sem assunto. Todos sabiam, indistintamente, que à sua frente estavam não apenas jovens sem futuro, mas condenados à morte breve.
Quem teria coragem, depois, de lamber as próprias feridas, reclamar da crise, discutir demanda agregada, ISO-9000 ou persistir na crendice que está se formando uma nação moderna?
Se não fosse detido a tempo, aquele exército de cadáveres ambulantes mataria os bons sonhos burgueses que trafegavam na região.
E a cidade organizada reagiu. As associações dos amigos da rua Maria Antônia e de todas as ruas da região se organizaram e contrataram seguranças para expulsá-los das imediações.
O prefeito ordenou à guarda municipal que comandasse uma operação-arrastão, incumbida de devolver o exército de zumbis de volta para as profundezas. Nos dias seguintes, um policiamento ostensivo tomou conta do centro, fazendo com que qualquer honesto cidadão se sentisse aquecido pela proteção do poder público.
A 300 metros dali, na Câmara Municipal, vereadores situacionistas discutiam, entre si, quanto levariam do butim. Uma regional para aquele, um clube esportivo para o outro. Um pouco mais adiante, senhores vetustos do Tribunal de Contas do Município fechavam mais uma vez os olhos a licitações fraudulentas e ao esfrangalhamento das contas municipais.
E o prefeito finalmente dormia em paz, julgando que a prova do seu crime e de todos seus antecessores -os meninos-zumbis- não mais estaria ali para condená-lo com sua presença silenciosa. Assim poderia prosseguir em seu trabalho meritório de levantar pontes e viadutos, estranhas catedrais que, com seu rigor geométrico, com a solidez do cimento e do concreto, eternizariam seu dinamismo -e ajudariam a engordar os cofres do partido para as próximas eleições.
Engano seu. Os vultos dos meninos condenados jamais sairão das retinas de todos aqueles que, por algumas semanas, conheceram de perto a face macilenta da morte.

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