São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Esboço de um épico

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A ``NYT BOOK REVIEW"

Isaac Babel nasceu numa família judia de classe média, em Odessa, no dia 13 de julho de 1894; foi executado numa prisão da polícia secreta em 1940, muito embora a data oficial de sua morte, divulgada pelo governo soviético, tenha sido 17 de março de 1941. Antes de ser preso, em maio de 1939, Babel escrevera, ao longo de 25 anos, várias sequências extraordinárias de contos, comparáveis ao que há de melhor em Gogol e Maupassant, que ele adotara como mestres.
Sua coleção mais famosa de contos, ``Cavalaria Vermelha" (1926), toma por base a experiência como correspondente de guerra soviético, acompanhando a Primeira Divisão de Cavalaria, liderada pelo Marechal Budyonny, em campanha contra os poloneses, no verão de 1920. Babel manteve um diário, anotando fragmentos ``ao vivo", ou dando instruções a si mesmo sobre o que escrever para ``O Cavaleiro Vermelho", um jornal militar. Recém-lançado nos Estados Unidos, ``1920 Diary" é a primeira tradução inglesa deste diário.
Victor Erlich, um dos maiores críticos da literatura russa moderna, nota o contraste fundamental entre ``matéria e maneira" nas histórias da ``Cavalaria Vermelha", citando esta passagem: ``Então, Kudrya, do pelotão de metralhadoras, agarrou a cabeça dele e a prendeu sobre o braço. O judeu parou de berrar e abriu bem as pernas. Kudrya pegou seu facão com a mão direita e, cuidadosamente, para não se respingar, cortou a garganta do velho".
Será este um tom de distanciamento? Existe mesmo algum traço em Babel do que Lionel Trilling, introduzindo os contos há 40 anos, via como uma ``tentativa de dar conta do `ethos' dos cossacos"? Segundo Erlich, ``seria ingênuo e literal demais interpretar a posição do autor como um verdadeiro distanciamento. Há bons motivos para ver ali não a ausência, mas um esforço para fugir do afeto, reforçando a necessidade de se `distanciar' de uma emoção quase intolerável" (``Color and Line: Notes on the Art of Isaac Babel", 1987).
Ainda mais do que certos episódios de ``Cavalaria Vermelha", o ``Diário" é um precursor da literatura do Holocausto e mais impressionante do que qualquer outro exemplo deste tipo de literatura que eu jamais suportei ler. Poloneses e cossacos, indiferentemente, quando não estavam brigando entre si, competiam em torturar, violentar e assassinar os judeus presos na zona de combate. Em seu diário, Babel fala às vezes consigo mesmo, de forma direta: ``Que espécie de pessoa é o bom cossaco? Tem muitas camadas: pilhagem, enorme audácia, profissionalismo, espírito revolucionário, crueldade bestial". Deixando o ``espírito revolucionário" de lado, poderia estar se referindo aos inimigos poloneses ou, profeticamente, aos oficiais nazistas da SS.
Realizações definitivas como ainda parecem ser, nem por isto as histórias de ``Cavalaria Vermelha" contentaram seu autor, nem, muito menos, o Marechal Budyonny, que o processou por calúnia. As ironias de Babel não enganaram o Partido; mas Babel não teria se lamentado se elas chegassem a enganar qualquer um, mesmo em outro tempo e lugar? Ele era um artista ambicioso, um membro da escola de Flaubert, quase tanto como também o foi Maupassant. O contista irlandês Frank O'Connor -que se confessa influenciado por ``Cavalaria Vermelha", mesmo quando afirma, corretamente, que o melhor de Babel são as suas últimas histórias- compara o herói dos ``Contos de Odessa", o gângster judeu Benya Krik, ao ``technicolor flaubertiano" de ``Salambô".
O'Connor nunca chegou a ler o ``Diário". Escrevendo em 1962, equivocou-se num ponto: ``Tenho quase certeza de que algumas das coisas que Babel descreve ele nunca viu". O ``Diário", infelizmente, deixa claro, de modo aterrador, o quanto mais de violência contra judeus indefesos Babel testemunhou, de fato, do que se dispôs a representar nas histórias, por motivos em parte políticos e em parte pessoais, incluindo considerações estéticas. A posição autoral de Flaubert exige um distanciamento considerável, uma força cognitiva da ironia, que é uma parcela do que o poeta Ossip Mandelstam chamava ``nostalgia por uma cultura mundial". Há uma afinidade lírica entre Babel e Mandelstam: ambos compartilham, às vezes, uma forma de arte bem mais dependente da tradição poética, no que ela tem de mais elaborado, do que seria de esperar para um contista gogoliano como Babel. Para Wallace Stevens, Hemingway era essencialmente um poeta; talvez Mandelstam pudesse dizer o mesmo de Babel, que alcança afinal a mesma eminência de Hemingway como um criador de contos.
Mas o ``Diário", doloroso como é de ler, sugere um Babel ainda maior, que poderia ter-se desenvolvido não fosse o regime soviético, que deu cabo dele aos 45 anos. Há aqui uma completude digna de Tolstói, os esboços de uma arte épica, com Babel dizendo, para si mesmo, que está presente a ``um funeral sem fim". Como na ``Cavalaria", o diário ignora os cossacos metade do tempo, enquanto Babel observa as coisas ao seu redor, de maneiras que trazem à mente a habilidade de Tolstói para ver tudo como pela primeira vez. Também um traço de messianismo judaico é visível no ``Diário", no qual a revolução política está menos presente do que nas histórias. O autor comenta que está agora pensando suas próprias idéias.
Presumivelmente, elas dizem respeito aos dilemas de ser ``o" autor judeu russo de ficção. Embora tenha crescido numa família bilíngue em Odessa, falando russo e iídiche, ele encontrou sua casa literária na língua russa e transformou-se num escritor judeu russo quase da mesma forma como Philip Roth é um escritor judeu americano. Analisando ``Cavalaria Vermelha", o crítico Simon Markish, outro judeu russo, auto-exilado em Genebra, vincula a situação do personagem Lyutov (cujo nome aparece na capa dos cadernos de Babel, durante a campanha dos cossacos) à própria busca do autor por um novo estilo -estilo esse que, afinal, graças à polícia secreta, ele jamais encontraria. Alguns vislumbres do que poderia ter vindo a ser podem ser percebidos, aqui e ali, não só nas últimas histórias, como ``O Despertar", ``Guy de Maupassant" ou a minha favorita, a vitalista e grotesca ``O Fim da Casa de Repouso", mas também profeticamente no ``Diário":
``O comandante do Exército convoca o comandante da divisão para uma consulta em Kozin. Sete verstas de distância. Eu vou com ele. Cada casa permanece em meu coração. Grupos de judeus. Suas faces -aqui é o gueto, e somos um povo antigo, exausto, mas ainda temos alguma força, uma loja, bebo um café excelente, aplico um bálsamo na alma do proprietário, que fica atento ao barulho na loja. Cossacos gritando, praguejando, subindo nas prateleiras, azar do judeu suado de barba vermelha da loja. Fico vagando sem parar, não consigo sair dali, a cidade foi destruída, está sendo reerguida, existe há 400 anos, restos de uma sinagoga, magnífico templo velho em ruínas, o que era uma igreja católica, agora ortodoxa, de um branco encantador, com portal triplo, visível à distância, agora é ortodoxa. Um velho judeu -gosto de falar com os meus, eles me entendem. Cemitério, a casa arruinada do rabino Azrael, três gerações, a lápide sob uma árvore que cresceu por cima, essas pedras velhas, todas do mesmo formato, com a mesma mensagem, esse judeu exausto que é meu guia, uma família de judeus de perna grossa e expressão estúpida, vivendo num barraco junto ao cemitério, tumbas de três soldados judeus, mortos na guerra com a Alemanha. Os Abramovich de Odessa, a mãe veio para o enterro e posso ver essa mulher judia enterrando seu filho morto em batalha, por uma causa que para ela é revoltante, incompreensível, criminosa.
Um cemitério novo e outro velho -a cidade tem 400 anos.
Entardecer, caminho entre as casas, homens e mulheres judeus lendo cartazes e proclamações. `A Polônia é o cão da burguesia' e assim por diante. `Insetos podem causar a morte' e `não remover o fogão dos vagões aquecidos'.
Esses judeus são como retratos, longilíneos, silenciosos, de barba longa, não do nosso tipo, gordos e joviais. Velhos de postura nobre, gastando tempo, sem nada para fazer. O mais importante: a loja e o cemitério.
Sete verstas de volta a Boratyn, linda noite, meu coração vai carregado, gente de posses, meninas atrevidas, ovos fritos, toicinho, nossos soldados caçando moscas, a alma russo-ucraniana. Não tenho certeza se estou interessado".
Tivessem lhe permitido viver e Babel poderia, de fragmentos como esses, ter construído uma arte gigantesca, justapondo visões e histórias incompatíveis, numa escala muito além de tudo o que temos dele. Mesmo como uma anotação de diário, essas observações têm uma completude épica. Victor Erlich está de acordo com Simon Markish ao descrever o esforço artístico de Babel como uma tentativa de ``encontrar harmonia na dicotomia". Um e outro crítico sabem que isto era impossível; Babel também deve ter pressentido, mas não desistiu, embora acabasse caindo num prolongado silêncio, desperdiçando seu gênio.
Ser um judeu russo (escritor ou não) parece pura dicotomia, como a história, sem dúvida, ainda há de nos mostrar de novo. Talvez a última palavra sobre o assunto possa ficar com Benya Krik, o gângster judeu de Odessa, no grande conto de Babel, ``Como Se Fazia em Odessa": ``Se você precisa da minha vida, pode ficar com ela, mas todo mundo faz erros, incluindo Deus. Um erro terrível foi cometido, Tia Pesya. Mas não foi um erro de Deus botar os judeus na Rússia, para sofrerem um tormento pior do que o Inferno? O que há de mal com os os judeus viverem na Suíça, cercados de lagos de primeira categoria, com o ar da montanha e só gente falando francês? Todo mundo faz erros, sem excetuar Deus".

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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