São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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A pedagogia do novo museu

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por que um professor de literatura se transforma em curador? Em outras palavras: por que se distancia estrategicamente do quadro negro e da sala de aula para se esconder por detrás de uma exposição num salão de museu? Por que abandona, junto aos alunos, o cultivo da palavra escrita como instrumento pedagógico privilegiado? Por que opta pela organização da cultura por meio de imagens como recurso de diálogo com o grande público?
A resposta a essas perguntas pode conduzir à percepção de traços salientes da personalidade intelectual na berlinda. Ela terá o valor que têm as análises psicológicas das reviravoltas sentimentais, típicas no indivíduo que, já não tão jovem, a elas se entrega para desempenhar melhor as atividades profissionais e justificar o seu ganha-pão junto aos pares. Passemos por cima.
A resposta comporta também componentes que merecem ser debatidos, pois a questão transcende o campo do privado e adentra pelo uso e função do espaço público da ``escola", no momento em que a sociedade brasileira tem que negociar melhor as relações que a sua elite acadêmica mantém com as camadas de classe média ou populares que hoje, legitimamente, reclamam o livre acesso a isso a que chamamos de cultura, nas suas várias formas.
A instituição escolar (o educandário nos vários níveis) pressupõe regras radicais e firmes de desenvolvimento intelectual do aluno, sendo a principal delas o seu gradativo e lento aprimoramento disciplinar, com vistas à obtenção de um saber (um diploma, como se diz), que o colocará em situação excepcional dentro da sociedade. O conhecimento adquirido pelo aluno em quase duas décadas de estudo foi julgado idôneo e científico pelos mestres e é por isso que ele pode se dedicar à prática social da profissão na qual foi formado. A instituição escolar forma profissionais e pesquisadores especializados e, por ricochete, um minguado número de cidadãos responsáveis.
A essa estranha e necessária compartimentagem disciplinar e profissional do saber, houve e há reações saudáveis dentro da escola. Em décadas passadas, a política estudantil ocupava um espaço considerável na transformação do estudante unido em cidadão combativo. Sabemos como essa história foi cortada. Em décadas mais recentes, a vida semi-isolada na escola primária, no ginásio ou na universidade foi sendo enriquecida por atividades artísticas ou de cunho jornalístico, que, ao agregar estudantes com ideais profissionais diferentes, deu-lhes a oportunidade de expressar as idéias rebeldes da juventude pela criação.
Mais recentemente, a necessária diversidade na formação tem evitado o bitolamento disciplinar e reforçado o sentido da cidadania por meio dos estudos multidisciplinares, instituindo cursos, ciclos de conferências e palestras. Tais atividades, mesmo com teor altamente científico, flertam com o público não-especializado e não descuidam das explosivas questões sociais do país.
Todas essas aventuras alternativas do conhecimento dentro da escola ficam, no entanto, presas ao fato de que os seus atores são letrados e, mais, pertencem a parcelas mínimas da população, aquelas que estão sendo favorecidas pela idade e que foram sendo, no correr dos anos, favorecidas ou pelo dinheiro ou pela sorte. O acesso livre ao edifício onde se encontra instalada toda e qualquer escola é problemático para o resto e a maior parte da população brasileira, seja a que foi marginalizada por razões socioeconômicas, seja ainda a que frequentou aquele prédio um dia e dele se distanciou para ganhar a vida.
Abrir as portas da escola a todo e qualquer não é tarefa simples e não pode ser decisão precipitada. O par disciplina-qualidade pode não formar gênios nem cidadãos conscientes, mas é ainda a melhor garantia da formação de profissionais medianos. A situação do acesso ao edifício da escola se complicou nas últimas décadas: os campi universitários foram estrategicamente construídos pela ditadura militar em bairros afastados do centro.
Existe, no entanto, nas grandes cidades um outro edifício institucional, muitas vezes localizado no centro comercial. Nele, a tarefa pedagógica pode ser regida por princípios menos disciplinares do que os que regem (nos vários níveis) a escola e, por isso, o cidadão comum pode ter livre acesso a ele. (Por pedagogia se entende a trindade: ensinar, comover e deleitar). Trata-se do museu. Administradores e especialistas estão retirando dele uma coloração ideológica que lhe foi imputada (corretamente, na época) pelo espírito das vanguardas internacionais.
No século 20, a atitude do intelectual e do artista europeus com o museu tem sido a de combate aberto. Os grandes responsáveis pela guerra foram os movimentos de vanguarda hegemônicos, que, ao propor acertadamente o moderno como renovação e como manifestação do presente e ainda como rechaço do conservadorismo e da tradição, encontraram na atividade museológica o saco de pancadas preferido. No ``Manifesto Futurista" de 1909, Marinetti acolhe os ``bons incendiários de dedos carbonizados" que puseram fogo nas prateleiras das bibliotecas e desviaram os cursos dos rios para inundar as sepulturas dos museus. Bibliotecas e museus servem para o trabalho de picaretas e martelos, acrescenta ele. Um automóvel de corrida é mais belo do que a Vitória de Samotrácia, prega o ``Manifesto".
Tristan Tzara, no ``Manifesto Dadá" de 1918, polemiza com as obras do museu de maneira menos drástica e mais consoante com os tempos atuais. Recomenda que se pintem bigodes na Mona Lisa. Na mesma direção, Marcel Duchamp revoluciona os museus ao propor um urinol de mictório como escultura. Em ambos os casos, não se trata de destruir os museus, antes de retirá-los das cinzas do passado e de reformulá-los pela indispensável dose de iconoclastia, derrisão e escárnio, que serviria para atualizá-los de acordo com o gosto e as idéias antiburguesas da época.
Questionar o cânone artístico é ainda a melhor forma de desencorajar a tradição, ou melhor, de encorajá-la a não seguir os passos ditados pelo conservadorismo artístico e ideológico. Essa lição nos foi dada por T.S. Eliot, ao valorizar os ignorados poetas metafísicos e ao desprezar os supervalorizados poetas românticos. A poesia de língua inglesa, desde então, não foi a mesma. Nem a história da sua literatura, é claro.
Na vanguarda brasileira dos anos 20, era indispensável articular a idéia de forma nova à idéia de uma nova nação. Por isso, os nossos modernistas foram mais sensíveis do que os europeus à idéia de negociar com a tradição e o cânone, em busca de redefinições. Estavam menos próximos dos futuristas e mais próximos de Tzara, Duchamp e Eliot.
A descoberta das cidades históricas de Minas Gerais pelos modernistas, na Semana Santa de 1924, funcionou não só como modo de retomar por outro viés o passado pátrio, mas também como forma de dinamitar o cânone erudito proposto pelos parnasianos e simbolistas. Trocavam o século 19 pelo 18 e o trabalho acadêmico pela valoração do barroco primitivo de Aleijadinho. Em Ouro Preto, Tarsila do Amaral confessa a Mário de Andrade que pretende voltar a Paris não mais para saber da última moda artística, mas para aprender a arte da restauração de que tanto estavam necessitadas as igrejas de Vila Rica. Os modernistas entregam de volta aos brasileiros esses monumentos do passado na busca da identidade nacional.
Ao articular novo cânone e nova nação, e ao articulá-los à idéia de revisão do passado pátrio, os modernistas deram um passo decisivo no caminho de uma pedagogia pública (ensinar, deleitar e comover) de caráter nacional, que até hoje nos parece correta, embora com os excessos que puderam entusiasmar os ideólogos do Estado Novo. Por detrás das novas articulações, foram impostas uma visão justa, mas estreita, de nacionalidade e uma escrita elitista como a única digna de valoração. Esta, necessariamente, afastava do manancial a sede de saber dos não-privilegiados. Mas há mais do que problemas de época no projeto de restauração das cidades históricas de Minas.
Naquele projeto, retomado de maneira concreta na década de 30 por Mário de Andrade e Gustavo Capanema, está a idéia extraordinária da cidade-museu, onde ruas se confundem com corredores e onde igrejas se confundem com grandes salas de exposição. Tudo exposto à massa de cidadãos-espectadores.
Sabe-se que temos hoje uma tarefa tão importante quanto aquela pela frente. Seria indispensável revê-la pelo olho da megalópolis e propor alguns suplementos. Por exemplo, inverter termos: as cidades-museus, necessariamente provincianas, articulam para todos passado-nação-modernidade; falta-nos melhor apreender o novo sentido do museu-na-cidade e ampliar a abertura das suas portas para receber o cidadão comum.
Um exemplo suplementar. À medida que o Rio de Janeiro é, por vocação, cosmopolita, uma das atividades do museu-na-cidade é a de problematizar para a massa as articulações de mão-única (cânone-nação-história), que estão sendo dadas de maneira identitária pelas cidades-museus, enriquecendo assim a compreensão daquelas articulações com a contribuição milionária e suplementar das manifestações de outras culturas nacionais.
Cabe ainda dizer que o novo (o adjetivo se impõe) museu não deve comportar um único e excludente discurso erudito na organização e exposição do material, discurso de difícil acesso a não-especializados ou a visitantes a priori despreparados. A pós-modernidade nos ensina que não há discurso privilegiado no campo da cultura. Todos os discursos significam: há apenas, nas inumeráveis gradações, discursos com maior densidade intelectual e outros com menor densidade.
O curador deve ter a capacidade de poder, por meio das várias formas como organiza as imagens e produz a documentação, usar as múltiplas densidades intelectuais da linguagem discursiva, seja no esforço de incitar o iniciado à reflexão, seja no esforço de tornar possível a iniciação do calouro.

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