São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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JOGOS DE BIOY

JOSÉ GERALDO COUTO

Folha - Com o romance ``O Sonho dos Heróis", de 1954, o sr. realizou uma mudança brusca em sua literatura. O livro ambientava-se numa Buenos Aires muito concreta, com personagens e situações muito argentinas. Gostaria que o sr. falasse um pouco sobre essa mudança.
Bioy Casares - Eu sentia que romances como ``A Invenção de Morel" e ``Plan de Evasión" eram como jogos da razão, jogos racionais que não tinham muito a ver com a vida. E que um romance devia refletir a vida. Achava também que os leitores se sentiriam mais acompanhados por uma história de seres vivos, reais. Por isso escrevi ``O Sonho dos Heróis" e quase todos os livros que fiz depois.
Folha - O escritor Ricardo Piglia disse uma vez que, para ele, há dois grandes modelos fundadores da literatura argentina moderna, o de Borges e o de Roberto Arlt, e que os grandes escritores que vieram depois -o sr., Cortázar- tentam, de algum modo, conciliar as duas vertentes. O que pensa disso?
Bioy Casares - É uma tese interessante, mas não me convence. Nunca pensei nisso, na verdade.
Folha - A propósito: que pensava Borges da literatura de Roberto Arlt? E o que pensa o sr.?
Bioy Casares - ``El Juguete Rabioso" me parece um livro muito lindo. Em seus últimos livros, parece-me que Arlt perdeu um pouco seu bom caminho. Pareceram-me muito abstratos, sem vida. Ele tem um livro, ``Aguafuertes Porteñas", que não é um livro pretensioso, mas considero muito simpático. Mas de ``Os Sete Loucos" eu não gosto. E não creio que a Borges agradasse muito, tampouco.
Folha - Uma curiosidade: o sr. conheceu Macedónio Fernandez? Que acha de sua literatura?
Bioy Casares - Não o conheci. Quanto a sua literatura, parece-me espantosamente ruim. Mas parece que era um homem muito inteligente. Conversando, era muito interessante. Mas não escrevendo.
Folha - O sr. diz em suas memórias que nunca se sentiu de todo cômodo com o grupo da revista ``Sur". Gostaria que o sr. falasse um pouco do grupo e de sua relação com ele.
Bioy Casares - Uma das coisas que me desagradavam em ``Sur" é que eles publicavam certo tipo de autores, mas não Conrad, não Wells, que me agradavam muitíssimo, mas não eram muito considerados pela revista, que tinha uma atitude mais arrogante, ``high brow". Borges e eu tentávamos introduzir aqueles autores que nos eram caros, mas nunca nos ouviam. A mim, pelo menos, nunca.
Folha - A revista era liderada por sua cunhada, Victoria Ocampo. Parece que o sr. não se dava muito bem com ela, não é?
Bioy Casares - Não mesmo. As reuniões eram na casa dela, em San Isidro, e eu ia um pouco por obrigação, pelos amigos. Mas nunca me senti à vontade com ela. Não era má pessoa, mas era muito mandona. Era como se eu fosse um menino falando com uma diretora de colégio (risos).
Folha - Falemos um pouco da Argentina. Das três paixões nacionais -o tango, o futebol e a política-, parece que o sr. só se interessa pelo tango, não?
Bioy Casares - Sim, é verdade. Houve uma época em que planejei publicar uma antologia do tango argentino, mas acabei não fazendo. Quando era jovem, joguei futebol, assim como joguei rúgby e tênis, e também corri bem nos cem metros. Hoje, o futebol me agrada moderadamente. Não torço por nenhum time, nem costumo ver os jogos da seleção argentina.
Folha - O sr. quase nunca fala de política, mas já disse que o período do peronismo foi um pesadelo. Que achou da reeleição do ``peronista" Menem?
Bioy Casares - Não tenho opinião. Não votei e, se votasse, não sei em quem votaria.
Folha - Uma vez, acusaram a Borges de não ser argentino e ele respondeu: ``Não devo ser, mesmo, pois os argentinos preferem Paris, e eu prefiro Londres" (risos). O sr. gosta mais de Paris ou de Londres?
Bioy Casares - Gosto das duas, igualmente.
Folha - O que lhe agrada e o que lhe aborrece no fato de ser argentino?
Bioy Casares - É difícil dizer. Eu me sinto muito bem em Buenos Aires. Quanto ao que me incomoda aqui, vejamos... o excesso de amor pelo futebol (risos) e também o excesso de paixão política.
Folha - Lendo suas memórias, vemos que a poesia foi muito importante em sua formação, desde a infância. Por que o sr. nunca escreveu poesia?
Bioy Casares - Escrever, escrevi, mas nunca publiquei, porque nunca fiz poesia que me agradasse de verdade.
Folha - Será que o sr. não está sendo muito exigente?
Bioy Casares - Creio que ninguém lamentará que eu seja muito exigente. É possível que lamentem que eu seja pouco exigente (risos).
Folha - Entre os poetas, quais foram os mais importantes para modelar sua sensibilidade?
Bioy Casares - O romanceiro espanhol, Jorge Manrique, algumas passagens do ``Martin Fierro". De algum modo, seu autor, José Hernandez é um poeta menor, mas muito acertado.
Folha - O cinema também foi muito importante para o sr. Acredita que tenha influenciado seu modo de narrar?
Bioy Casares - Pode ser, oxalá que sim. Creio que em meus romances e contos há, às vezes, cenas que se vêem, e eu as imagino um pouco como no cinema. Quanto à estrutura narrativa, à montagem, não tanto.
Folha - Que pensa de um cinema descontínuo e fragmentário como o de Godard?
Bioy Casares - Não me agrada muito. Não gosto da Nouvelle Vague.
Folha - E das estruturas narrativas cerebrais de um Resnais?
Bioy Casares - Prefiro isso à Nouvelle Vague, mas em geral me agrada mais o cinema narrativo clássico. Os americanos, claro, mas também alguns italianos. Talvez um dos diretores que mais me agradem seja Fellini, talvez Antonioni, também, em alguns filmes. Além disso, há diretores de quem gostei de algum filme, mas não acompanhei a carreira, pois nunca pretendi ser um cinéfilo ou historiador do cinema.
Folha - Muitas de suas obras foram adaptadas ao cinema. Entre essas adaptações, quais são as que mais lhe agradam e as que mais lhe desagradam?
Bioy Casares - Uma amiga brigou comigo para sempre porque eu lhe disse que não gostava de nenhuma das adaptações que fizeram de minhas histórias. Mas é a verdade. Só ``Invasión", filme de Hugo Santiago, cujo roteiro escrevemos Borges e eu, pareceu-me um bom trabalho.
Folha - Gostaria que o sr. falasse um pouco sobre suas relações com alguns escritores que foram ou são ainda seus amigos. Comecemos por Julio Cortázar.
Bioy Casares - É interessante. Cortázar e eu nos vimos muito poucas vezes na vida, mas sentimos sempre uma grande amizade. Ele foi muito generoso comigo, muito generoso. Elogiou-me muitas vezes e chegou a citar-me num conto seu. Eu teria gostado muito de agradecê-lo, mas ele morreu antes que eu pudesse fazê-lo.
Folha - Cortázar reconhecia ser muito influenciado pelo sr.
Bioy Casares - Bem, eu diria que eu sou influenciado por ele.
Folha - E Italo Calvino, que também me parece influenciado pelo sr.?
Bioy Casares - Também foi muito amigo meu. Conhecemo-nos em Paris, depois nos reencontramos na Itália. Como escritor, encanta-me como Calvino começa seus relatos. Parece-me que ele sabia começar suas histórias melhor que ninguém. E continuar também, claro. Mas me surpreende essa capacidade que ele tinha para interessar o leitor nas três primeiras páginas, fazer com que o leitor já estivesse metido no livro.
Folha - E Octavio Paz?
Bioy Casares - Somos muito amigos. Nós nos conhecemos também em Paris.
Folha - E que lhe parece sua literatura, sua obra?
Bioy Casares - Prefiro falar de outra coisa (risos). Eu o amo muito, mas não me agrada o que ele escreve.
Folha - Do chamado ``boom" latino-americano, que autores o sr. considera que têm valor próprio e que não serão esquecidos?
Bioy Casares - Creio que García Márquez é muito bom, Vargas Llosa também. Que outros há? De Cortázar, já falamos, é um grande escritor. De Alejo Carpentier, não gosto nem um pouco.
Folha - O sr. não acha que o ``boom" é um daqueles casos em que fatores exteriores -políticos, culturais- se sobrepõem ao valor intrínseco das obras?
Bioy Casares - Sim, é verdade, mas de todo modo há que reconhecer a qualidade de alguns escritores, como aqueles que mencionei.
Folha - Como o sr. vê a tendência literária do ``nouveau roman"?
Bioy Casares - Não gosto do ``nouveau roman", acho que seus experimentos não levam a parte alguma. Pelo menos para mim, suas obras não tiveram nenhuma utilidade, nenhum interesse.
Folha - Em ``Guirnalda con Amores", o sr. escreveu que ``toda idéia é ou será um lugar-comum". É por isso que o sr. escreveu relativamente poucos ensaios, preferindo a ficção?
Bioy Casares - Não. Escrevi poucos ensaios porque sempre tive muitas histórias para contar, e não me sobrou tempo.
Folha - No mesmo livro, o sr. fala do ideal de que alguma página atingisse a intensidade da música. Em que páginas o sr. acredita que chegou perto disso?
Bioy Casares - Em nenhuma. Oxalá tivesse conseguido. Mas é, pelo menos para mim, um ideal perfeitamente inatingível.
Folha - Quais são as relações que o sr. mantém hoje com Maria Kodama, a viúva de Borges?
Bioy Casares - Nenhuma relação. Ela não me quer nem um pouco. Mesmo quando Borges ainda vivia, nunca tivemos amizade.
Folha - Em 91, o sr. publicou, em edição limitada, um livrinho chamado ``Unos Dias en Brasil", que está totalmente esgotado. Como era esse texto?
Bioy Casares - Era uma edição de 600 exemplares. Nem eu tenho um, mais. Era uma evocação de minha passagem pelo Brasil nos anos 50, quando eu representava o Pen Club. Eu fui então ao Rio e a Brasília. Lembro-me de que em Brasília me levaram à avenida onde seriam construídas as embaixadas estrangeiras. Apontaram-me um grande buraco e disseram: ``Aqui vai ser a Argentina" (risos). Fiquei muito espantado.

O evento tem o apoio do Grupo Pão de Açúcar, do Sheraton Mofarrej, da Transbrasil, do Ceal (Conselho de Empresários da América Latina) e dos vinhos Don Valentin

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Conto inédito de Bioy Casares à pág. 5-6

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