São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Assassinato de Kennedy destruiu nossa fé"

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SÉRGIO DÁVILA; TETÉ RIBEIRO

O sr. é um dos mais importantes escritores norte-americanos em atividade, ao lado de nomes como Gore Vidal, John Updike e Paul Auster. Este, inclusive, lhe dedica seu romance "Leviatã". A posição é confortável?
O mais importante é sentir que estou trabalhando em oposição ao poder. Escrevo contra o poder, contra as corporações, contra o status quo. Contra todo o processo de absorção, processo pelo qual a cultura absorve e neutraliza as mais interessantes formas de ficção.
O sr. conhece algo da literatura brasileira? Nomes como Machado de Assis, o escritor mais importante, Jorge Amado, o mais traduzido, ou Paulo Coelho, o mais vendido mundialmente, lhe soam familiares?
Um dos meus romances favoritos é "Epitaph of a Small Winner" ("Memórias Póstumas de Brás Cubas), de Machado de Assis. Eu li este livro pela primeira vez há alguns anos. Recentemente, reli a obra e percebi que continua a ser forte e original.
A respeito de "Ruído Branco", seu livro mais vendido no Brasil, o sr. diria que é uma obra autobiográfica?
Não. Mas acho que a sociedade norte-americana, da maneira como se apresenta hoje em dia, se parece mais e mais com o mundo descrito em "Ruído Branco".
A crítica mundial encontrou certa dificuldade em resenhar este livro, por seu tema. Como o próprio autor explicaria "Ruído Branco"?
O romance pode ser provavelmente resumido em uma frase: "Quanto maior o avanço tecnológico, mais primitivo o medo".
A seu ver, de que maneira o assassinato do presidente John Kennedy, assunto de seu livro "Libra", afetou a sociedade norte-americana?
O assassinato destruiu nossa crença numa realidade americana coerente. Introduziu-nos num mundo caótico e ambíguo. Até hoje os fatos mais estarrecedores ainda não nos foram solucionados. Quantos atiradores, quantos tiros, quantas perfurações no corpo do presidente?
Além disso, foi a partir daí que passamos a desenvolver uma crença na manipulação secreta da história. Todos aqueles documentos perdidos ou destruídos, gravações oficiais proibidas, o número de mortes e suicídios suspeitos... O assassinato do presidente deixou um vazio. Fez com que tudo fosse possível, nos tornou suscetíveis às mais incríveis teorias. Desde Dallas, vemos conspiração em todos os lugares.
Em que medida "Libra" tenta ou consegue refletir isso?
O assassinato do presidente destruiu nossa fé na narrativa oficial da história nacional. Em "Libra", tentei restaurar esse sentido de narrativa, tentei criar uma história na qual pudéssemos acreditar. Quando os historiadores não conseguem explicar um acontecimento significativo ou resolver um grande mistério, os artistas tentam imaginar uma solução. Talvez "Libra" seja uma maneira de a ficção resgatar a história de suas confusões.
De que maneira o assassinato de Kennedy afetou-o pessoalmente?
Eu não creio que meus livros pudessem ter sido escritos no mundo que existia antes do assassinato de Kennedy. Algumas das consequências que nasceram daquele momento em Dallas -perigo, ambiguidade, incerteza, a evidência das diferenças sociais- são temas persistentes em minha obra.
Numa nota ao final de "Libra", o sr. diz que mistura aleatoriamente fato e ficção. Para realizar a parte factual, o sr. fez algum tipo de pesquisa? Leu, por exemplo, os 26 volumes do Relatório da Comissão Warren, que o sr. já definiu antes como "o romance que James Joyce teria escrito se tivesse vivido 100 anos e morasse em Iowa"?
Sim, pesquisei muito para escrever "Libra". Isso incluiu viagens a Dallas, Fort Worth, Miami e Nova Orleans. E, sim, fiz uma minuciosa e rigorosa investigação sobre os 26 volumes do Relatório Warren.
Em "Ruído Branco", o personagem principal, o professor universitário Jack Gladney, afirma que as pessoas conhecem apenas dois lugares: aquele onde vivem e a televisão. Há uma relação entre essa afirmação e o fato do assassinato de Kennedy ser o primeiro grande acontecimento coberto pela mídia audiovisual nos EUA?
Kennedy foi morto em filme, Oswald foi morto em televisão. Isso tem um significado? Talvez represente que a morte de Oswald foi instantaneamente absorvida. Tornou-se pública, pertencia a qualquer um. Na morte de Kennedy, além da fotografia do desfile presidencial feita por um anônimo em Dallas, há o filme, o famoso "Zapruder's Film" (com cenas do assassinato em Super-8 feitas pelo cinegrafista amador Abraham Zapruder).
Este filme dura apenas 18 segundos e assisti-lo se tornou um privilégio de poucos. Quase ninguém viu o "Zapruder's Film", até a metade dos anos 70, quando foi mostrado pela primeira vez na televisão. Em outras palavras, a classe social a que se pertencia foi determinante.
Qualquer pessoa pôde assistir à morte de Oswald enquanto jantava em frente à TV. E ele continuava morrendo na hora em que as pessoas iam dormir. Mas se quisesse ver o filme da morte de Kennedy, você teria de ser muito importante ou dar muito dinheiro a alguém.
A terrível lógica do "Zapruder's Film" é que o nosso presidente mais fotogênico está morto em filme. De alguma maneira, isso teria de acontecer assim. Esse momento pertence ao século 20, o que significa que ele necessariamente deveria estar capturado num filme.

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