São Paulo, segunda-feira, 31 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A utopia possível

FLORESTAN FERNANDES

O presidente Fernando Henrique Cardoso aproveitou as cerimônias de outorga do grau de doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra para fazer uma incursão pela sociologia do conhecimento e concepção de partido de centro-esquerda. Chamou-me a atenção sua referência à busca da utopia possível.
Ao se tornar ``possível", uma utopia deixa de existir. A noção, que retomou significados negativo e positivo graças a Karl Mannheim, acalentou fantasias de Campanella e Morus sobre a cidade perfeita. Influenciou as idéias de Owen, Fourier e outros sobre reformismo socialista -a rota de superação da ordem a partir da reforma social, que o soldava à sociedade existente e à sua transformação gradual.
Anarquistas e marxistas coincidiam em eleger as lutas radicais como meio de criação de uma sociedade nova. A reforma aparecia como mero ponto de partida, com o objetivo de ultrapassar a ordem pelos agentes históricos subalternizados, trabalhadores e espoliados.
Marx e Engels recusavam o conceito de utopia, que aplicavam restritivamente aos socialistas reformistas ou utópicos. A revolução produziria a nova sociedade, germinando suas próprias infra e superestruturas. Mesmo o termo ideologia se excluía do seu horizonte intelectual. Não cabia mais esconder realidades espúrias depois do advento da transição democrática ao socialismo.
Se transferirmos para o presente as implicações desses embates conceituais, devemos perguntar: que tipo de utopia seria possível sob o capitalismo monopolista de hoje? Não existe espaço histórico para tal probabilidade. Com o deslocamento da importância do trabalho para a tecnologia e as tendências ao crescimento rápido da exclusão do trabalhador excedente e do pauperismo, a composição do capital só deixa abertas duas saídas -a revolução social, para os assalariados, e uma autocracia de corte fascista, para os manipuladores do capital e das empresas gigantes.
Por isso, é crucial o argumento crítico do professor Boaventura de Souza Santos salientando, em sua intervenção, que se estava atribuindo à social-democracia um valor que ela perdera com sua crise no berço europeu. As convicções do presidente esbatem-se nesse muro intransponível. A social-democracia, de fato, tem sido útil para a evolução do capitalismo. Ao alcançar a etapa atual, este prescinde do recurso a ela e força o aparecimento de um novo tipo de sociedade e de Estado, mergulhados no uso selvagem da violência autodefensiva e na ultraconcentração da riqueza.
É curioso que seja assim. Os que festejaram a morte do socialismo -revolucionário- foram condenados a um desaparecimento inesperado ou à completa anulação. Ocupantes do poder vêem-se, na verdade, fora do seu ciclo ativo e da realização de sonhos reformistas. No mesmo passo histórico, o socialismo que ainda representa uma alternativa é o seu antípoda, defensor da revolução social e da liberdade com igualdade, dissociadas de quaisquer vinculações utópicas.

Texto Anterior: Brasil x Botsuana
Próximo Texto: SÉCULO INCRÍVEL; AI DE TI, COPACABANA; CONCENTRAÇÃO NA BANHEIRA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.