São Paulo, terça-feira, 1 de agosto de 1995
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'O moralismo e os cortes da cultura são interligados'

``São interligados o enorme moralismo e os cortes à cultura e às coisas públicas"
``Neste momento, o teatro, como oásis público de cultivo da vida, ele não existe"
``Foi preciso ir antes de Cristo para tocar no ponto onde estão os impedimentos"
Folha - Dionísio é um deus que ressurge, que vai ao fundo e volta...
Zé Celso - É um deus que morre e nasce a todo momento. É o deus cúmplice da vida eterna. Tem esta vida que é material, biológica, por exemplo, eu morro, mas alguma coisa continua, outros continuam. Ele é o deus desta eternidade da vida presente, não a eternidade transcendental, mas desta eternidade, que é a vida que não pára, que inclui a morte. Quer dizer, a etimologia é a do deus de duas portas, mas duas portas quer dizer incessantemente.
Folha - Quando você fez ``As Boas", e depois quando reabriu o Oficina com ``Hamlet", você usou a imagem do Dionísio que sai das sombras, que volta à superfície. Agora você está, digamos, coroando o renascimento com ``As Bacantes". Mas o renascimento é uma visão otimista para o teatro, para o mundo hoje, em que a visão geral é pessimista. Este é um momento de nascimento ou de descer às profundezas novamente? O campo, como mostra a dificuldade de produção que vocês enfrentam, não está preparado para semear.
Zé Celso - Mas é exatamente o momento em que Dionísio menos pode que ele é mais necessário e que, portanto, ele mais pode. A falta de condições e os cortes, principalmente o corte econômico, da divindade da moeda forte, a divindade do pavor da inflação e da estabilidade financeira, o deus real!, o deus do carro-forte... O palácio de Penteu na peça é um carro-forte. Quando adaptamos o texto, há sete anos, o palácio de Penteu era em cima de um tanque de guerra, o palco italiano. Agora é em cima de um carro-forte.
O lado moralista, enorme, é consequência exatamente da usura, dos cortes para a cultura. São interligados, o moralismo e a política de corte às coisas públicas, às coisas de utilidade pública, de necessidade coletiva. O corte determina, principalmente na área do teatro, na área da cultura, um período de obscurantismo, um período de ignorância, um período sem cultura. E este período de descultura é que permite o avanço de todo o moralismo, de todo o obscurantismo em que... Por exemplo, nós estamos sendo processados, o ``Mistério Gozozo".
Folha - Em Araraquara?
Zé Celso - Em Araraquara. É um de milhares. Agora não são mais aquelas figuras das Senhoras de Santana. São os homens de bem da República, que têm a aparência de integridade absoluta, mas que tomam uma posição absolutamente obscura, porque são pessoas incultas. No Brasil, neste momento, o corte cultural provoca uma situação de incultura. E a única forma de otimizar, exatamente, essa vida pessimista é você cultivar os deuses dela. Este é um momento em que o teatro como utilidade pública, como oásis público de cultivo da vida, ele não existe.
Folha - Mas onde é que você vê uma onda moralista, no sentido de juntar as duas coisas, o problema do Estado, o problema público, com a questão moral?
Zé Celso - É consequência do...
Folha - Eu queria que você citasse exemplos.
Zé Celso - Eu me ponho no papel do (ministro da Saúde, Adib) Jatene. Eu gostaria que tivesse na área da cultura um homem como o Jatene, ou mesmo como o Paulo (Renato Souza), da Educação. São pessoas, são homens públicos que estão vendo acima de tudo o interesse público. Não estão submetidos aos interesses dos economistas, dos tecnocratas. São homens que estão ligados ao concreto da situação da saúde ou da situação da educação. Falta exatamente a terceira cabeça, que é a cultura, que unifica as três, porque são uma coisa só. Num momento em que você corta a cabeça da cultura, mais violentamente do que ela foi cortada no regime militar, nesse momento há toda uma política, por exemplo, aqui em São Paulo...
Folha - Você está dizendo que a situação é pior do que no regime militar?
Zé Celso - A situação da produção cultural, em relação à produção de teatro, é. É pior.
Folha - Você acha que isso se deve ao governo de Fernando Henrique?
Zé Celso - Não só ao governo de Fernando Henrique. É anterior. E se agravou aqui em São Paulo, no governo (Mário) Covas. Aliás, Penteu quer dizer Covas, quase (risos). Quer dizer ``aquele que leva a morte em si". Eu votei no Covas, espero que ele se cure, mas ele só vai se curar se conseguir coroar a cabeça de hera. Ele não sabe o quanto custa, como diz a peça, explicitamente, uma cidade desprezar a orgia. Quando digo orgia eu estou dizendo teatro, estou dizendo cultura. Quando essa cabeça é cortada, é muito grave, é muito perigoso, porque determina todo o obscurantismo que leva ao moralismo, ao racismo, a todas as coisas que estão acontecendo agora.
Folha - Você fala do poder, você reclama do poder, mas a impressão é que você quer que o poder subvencione o teatro. O teatro não tem outra maneira de sobreviver, o teatro que você defende, a não ser com o dinheiro do Estado?
Zé Celso - Tem com o dinheiro, o mesmo dinheiro que sustenta o jornalista. Dinheiro é uma coisa. Dinheiro é dinheiro, seja do Estado ou seja da Folha de S. Paulo. Seja de onde for, é dinheiro.
Folha - O que eu estou perguntando é, o Oficina depende do Estado?
Zé Celso - Não, o Oficina depende do interesse público para que ele exista. Aliás, não basta o Estado. Que o Estado tem de subvencionar o teatro, isso tem. Tem porque o teatro é uma atividade... Se não for o Estado, a iniciativa privada, não importa, tem que ter investimento para que ele exista na sociedade contemporânea. Acontece que os investimentos de marketing e os investimentos públicos, eles estão absolutamente congelados, destinados a uma política que não leva em consideração a criação.
Agora, o problema não é nem deles. O problema é que nós, artistas, não... Este trabalho de ``Bacantes", ele vem como um trabalho de luta, porque nós somos... O teatro Oficina é um teatro que tem, como dizem os tucanos?, notório saber para fazer ``As Bacantes". Agora, resta romper a barreira cultural, que não permite que haja investimento, público ou privado, aqui, exatamente neste lugar, onde se cultiva a possibilidade de sair do impasse em que se vive atualmente.
Folha - Você não acha que montar ``As Bacantes" pode agravar o cerco, a barreira? Porque não é um cerco do estado, é um cerco da sociedade, um cerco moral.
Zé Celso - Não é da sociedade, é de uma parte da sociedade. É do Olimpo da sociedade. O Olimpo da sociedade tem medo que aconteça o teatro ao vivo, que as coisas aconteçam ao vivo novamente, e que você abra a porta para outros rios sociais. Porque o teatro do Olimpo é um teatro segregador, ele quer ficar exatamente onde está. Está bom onde está, porque ele está altamente cumpliciado. Agora, eu acho que isso não é eterno. O trabalho de transformação disso depende dos artistas. Eu, como artista, muito inspirado no ministro Jatene, aliás, eu acho que é meu dever trabalhar para que exista teatro.
Eu pensei em montar ``Cacilda", mas foi preciso ir mais para trás, foi preciso ir antes de Cristo, para trabalhar exatamente no subsolo. Eu acho que isso, em vez de isolar, vai fazer com que nós toquemos diretamente no ponto. Nós estamos trabalhando diretamente no ponto onde estão os impedimentos. Este ritual, inclusive, existia antes da peça ser escrita. Quer dizer, faz parte da história milenar da sociedade e isso está sendo invocado. Esse poder dá passos para que aconteçam coisas e eu vou trabalhar esse material como artista, para convidar a sociedade, convidar o teatro de Hera, convidar os que cultuam a moeda-forte, convidar o Paulo Maluf, que já fez o papel de Penteu com Elke Maravilha, e que bancou os alicerces deste teatro.
Folha - Ele fez Penteu?
Zé Celso - Fez. Tem gravado em vídeo. Leu uma cena, uma cena em que ele dizia que bancava, com um pacotão pesado de ouro. (risos) Mas os gregos faziam, os mais ricos, como liturgia. Eles tinham o dever de bancar. É uma questão de equilíbrio. As coisas têm que ter o mesmo peso. Num certo sentido, o peso do poder, o que significa hoje o Paulo Maluf, é correspondente ao peso que tem a peça, que tem ``As Bacantes" e que tem o teatro Oficina. Essas coisas todas numa balança, por justiça, elas têm que acontecer juntas. É uma lei de equilíbrio, transcende a luta de classes. É uma coisa que está aí, nesta época da Grécia.

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sobre ``As Bacantes" à pág. 5-7

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