São Paulo, terça-feira, 1 de agosto de 1995
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Ninguém quer ser burro ou reacionário

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estamos vivendo uma seca de palavras. Precisamos irrigar o terreno com expressões novas, para continuar o debate nacional de idéias. Vejamos um exemplo.
FHC falou: ``Para ser de esquerda, não precisa ser burro". Uma frase que há alguns anos teria um significado óbvio como o sol a pino lança hoje intelectuais em pânico. Como se a carapuça lhes coubesse. Estranha identificação.
``Falaram aí de um animal de carga, com patas ferradas, orelhas longas e um rouco ornear nos campos? É comigo! É comigo!", urraram muitos com ódio. E se defendiam: ``Eu não sou burro, e sou de esquerda!".
Assim, torciam o significado da frase dita na TV (há teipes), como se ele tivesse dito: ``Quem é de esquerda é burro!". Mas, como o próprio FHC se intitula de ``esquerda", teria sido vítima do próprio silogismo: ``Se todo esquerdista é burro e eu sou de esquerda, logo eu sou burro". Seria uma burrice, ou uma confissão.
Claro que ele queria dizer: ``Sou de esquerda, mas, ohhh... sou inteligente". As palavras são feitiços. Há palavras terríveis: ``Burro". Existe coisa pior? ``Esquerda."
Há alguns anos, ``esquerda" era uma palavra nítida. Hoje, é ambígua. O sujeito entrava no botequim e berrava. ``Eu sou de esquerda." Todo mundo entendia. Aliás, nem precisava falar; o jeitão bastava. Eu me lembro do Tarso de Castro entrando no Antonio's e os burgueses confrangidos, oferecendo-lhe as mulheres, cochichando: ``Olha ali o homem de esquerda..."
Pressupunha inteligência imediata. Hoje, não. A frase de FHC eu tomo apenas como exemplo da Babel de conceitos em que nos debatemos hoje.
Segundo FHC, o sujeito pode ser de esquerda e ser inteligente.
Esquerda não inclui burrice. Ao contrário, a frase era excludente, separava as categorias: a) burro; b) esquerda. Permite uma combinação infinita: podemos ter esquerdistas burros e esquerdistas inteligentes, burros de esquerda e burros de direita.
A forma ``não precisa ser burro" significa, por denegação, que o sujeito pode ser ``de esquerda e não-burro". Ou seja, substituindo a oração negativa ``não precisa ser burro" por uma afirmativa, teremos a hipótese ``para ser de esquerda, pode-se (ou deve-se) ser inteligente".
Infelizmente, daí poderíamos deduzir que para ser inteligente ``não precisa ser de esquerda", o que, sem dúvida, fez muitos diligentes patrulheiros suspeitarem da frase que por um torpe corolário pode insinuar que ``se, para ser inteligente não precisa ser de esquerda, logo um direitista pode ser inteligente".
Assim sendo, ele estará ``louvando" a direita por tabela. Não defendo a frase de FHC (que achei até mal-resolvida como forma). FHC, sempre que irritadiço, perde o talho-de-foice para a diatribe.
O ``nhenhenhém", por exemplo, foi péssimo como revide: apenas um coloquialismo em desuso. O mesmo para ``nefelibata". Eu, se presidente (ahhhh, sonho de delícias!), teria dito mais propriamente: ``Sejam de esquerda, mas não sejam burros". Ou: ``sejam de esquerda, mas inteligentes". Então, vemos que o que doeu fundo na alma de intelectuais não foi o perigo de não serem ``de esquerda" (este galardão que ostentam desde 1789), mas o risco do apodo ``burro". O sujeito pode ser tudo, menos ``burro".
Logo, vemos claramente que a dicotomia principal é ``burrice ou inteligência" e não ``esquerda ou direita". Podemos marcar novos balizamentos. Temos a categoria: ``os burros". Podemos ter burros de esquerda e burros de direita.
Há esquerdistas de todo tipo. Marx era de esquerda, Paulo Paim também. Ora, vemos que a categoria política não salva ninguém, nem condena. Já a opacidade da mente, o quengo impenetrável talvez seja um fenômeno mais amplo do que suspeitávamos no Brasil.
Assim, talvez o termo ``esquerda" seja usado muito como anteparo ou biombo para esconder uma deficiência mental inconfessa: ``Sou de esquerda, logo não sou burro". Ou: ``Se fosse burro, não seria de esquerda".
Seria simples, se o conceito ``esquerda" tivesse ainda o brilho puro dos tempos de Tarso de Castro (vide acima). Há inúmeras acepções para o termo, hoje.
Marx dizia: ``Eu não sou marxista". Ou seja, o que definiria a esquerda seria sua maleabilidade praxística para as situações de modo a conseguir, pela mutação inteligente (como as lulas), uma adaptação a táticas novas para defender os explorados na luta de classes.
Ao dizer ``não sou marxista", o grande gênio insinuava que não se aferraria como uma mula a eternos dogmas ou táticas antigas, mas procuraria ser ``radicalmente aferrado à complexidade" (cf. as ótimas páginas de Althusser em ``Pour Marx", no qual ele mostra como se chega ao simples passando pelo complexo e não o contrário).
A se depreender da expressão feliz de Marx (ele ao menos, creio, é insuspeito), a categoria ``de esquerda" não é uma virtude inerente, um adereço da alma, um ornamento do coração como, digamos, ser bacaninha, bom pai, ou ser Flamengo.
Mede-se mais pela eficácia de uma ``práxis". Ou seja, como disse Max Bense, um teórico de estética, ``na obra de arte temos de buscar o bem do objeto e não o bem do sujeito". Assim, Michelangelo fez a ``Pietá" não para mostrar que era ``legal", mas arrastado pelo imenso amor de atingir o gesto humano no mármore... (epa!).
Reparem que a categoria ``de direita" está esquecida, por método. Faço-o porque a direita é mais óbvia: ``Tou a fim do meu, danem-se os outros!". Por outro lado, a dissecação do ``bom" é mais difícil, pois todos querem ser considerados justos, ou ``de esquerda". O sujeito mata a mãe e encontra um motivo que o absolva.
Até acho que há uma grande lição no canalha que se diz canalha. Isso é incluir o mal do mundo dentro de si, em vez de dizer: ``O mundo é mau, eu sou legal".
Assim, a ``esquerda" não é um termo tranquilo como digamos ``mar" ou ``flor". A palavra é cambiante, cheia de perigos. O fato de eu escrever este texto levanta suspeitas crudelíssimas como: ``Que estará esse pequeno-burguês querendo provar? É-se de esquerda ou não, questão de fé!".
O epíteto ``esquerda" faz sucesso porque é sintético. É a mãe das categorias, que engloba todas as virtudes e até absolve fracassos (``fracassei porque sou de esquerda" -nunca o vice-versa). Ser de esquerda não é uma marca inevitável como, digamos, ser corcunda ou perneta. O homem de esquerda é-o por opção auto-sustentada. Nós, que nos achamos ``de esquerda" (eu também), nos arrogamos uma universalidade delirante. Outras categorias não são tão abrangentes assim.
As minorias sexuais ou raciais, por exemplo, não se atribuem tais grandezas. Um sujeito é ``gay". É bonito, é a assunção de um limite, de um aldeamento da alma que lhe dá a grandeza da coragem. Ou o sujeito é negro. Idem.
Isso os engrandece por ilhamento, inclui-os na luta do mundo real. Mas também não os exime de eventuais pequenezas. Por exemplo, o cara pode ser ``gay" e racista. ``Eu nunca darei para um bofe crioulo!" Ou pode ser negro e antigay: ``Esses viados chamaram nosso herói de `Zumba, a rainha dos Palmares'!".
O esquerdista da alma, que nada faz, só diz que o ``é"; busca uma amplidão absolvida. Assim, na linha desse perigoso raciocínio, vemos que muita gente que se diz ``de esquerda", usa esse auto-apelido para dizer que é inteligente, ou ainda para justificar uma inação política, substituída por um desejo abstrato do Bem.
Há um tipo de esquerdista virtual que não quer acabar com a miséria. Ele pretende mantê-la ``in vitro", para nela se dessedentar, para dela beber. Claro que não sou eu, nem o leitor. Mas os há.
Eles abominam complexidades administrativas e providências práticas que podem pôr fim a seu viveiro de ilusões. Talvez eles se enquadrem na categoria de socialistas utópicos, contra os ``científicos" de que falava Marx. Ou ainda podem ser daqueles que fazem a ``miséria da filosofia", como Marx apodou o Proudhon, quando este o acusou de ser o ``filósofo dos miseráveis".

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