São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Petistas têm de superar o ódio, diz Lula

MARCELO BERABA; CARLOS EDUARDO ALVES
DA REPORTAGEM LOCAL

Duas semanas antes de deixar a presidência do PT e dez quilos mais magro, Luiz Inácio Lula da Silva faz um diagnóstico duro da situação do partido.
Lula admite que existem relações de ``ódio" entre petistas e diz que, se não houver uma distensão interna, os petistas não têm "como sair por aí vendendo a idéia de que é possível criar um mundo justo".
Na avaliação sobre o partido, Lula faz autocrítica e reconhece que teve responsabilidade no processo de esgarçamento das relações petistas.
Lula enxerga ``banditismo" em setores do sindicalismo, dos quais não exclui nem a CUT, e defende a necessidade de o movimento sindical repensar as greves nos setores essenciais.
Pela primeira vez publicamente, o dirigente anuncia o apoio à candidatura do ex-deputado José Dirceu à presidência do PT.
Depois de deixar a direção do partido, no próximo dia 20, em Guarapari (ES), Lula quer viajar pelo país.
``Quero criar no país a chamada consciência da cidadania", declara. A seguir, os principais trechos da entrevista à Folha:

Folha - O presidente Fernando Henrique Cardoso diz que o governo não tem oposição. O sr. concorda? Qual seria o papel hoje de um partido de oposição?
Luiz Inácio Lula da Silva - Não concordo. O Fernando Henrique Cardoso disse aquilo tentando justificar a incapacidade do governo de fazer coisas concretas.
No fundo, ele estava torcendo que pudesse jogar em cima das costas de alguém o fato de não estar conseguindo realizar políticas sociais, o compromisso maior dele durante a campanha.
A segunda coisa é que não é ele que dá o tempo que a oposição age. Agora, entram as questões da Previdência, da política tributária e da questão salarial.
Folha - O que isso muda no comportamento do PT?
Lula - Acho que o PT tem que agora tentar transformar a sua ação política, não apenas apresentando propostas alternativas. O PT tem que ir para a rua e chamar esse povo a participar mais.
Folha - Os seis primeiros meses do governo não paralisaram o PT?
Lula - No primeiro semestre de governo a oposição pouco pode fazer no Brasil e no mundo.
No primeiro semestre de um governo qualquer, não apenas a população tem expectativa de que alguma coisa vai acontecer, como a população não compreende que alguém queira que um governo que toma posse em três meses resolva os problemas do Brasil.
Passados os primeiros seis meses, o Fernando Henrique Cardoso agora tem que parar com o nhenhenhém e dizer o que vai fazer de política social, que é o que interessa ao povo brasileiro.
Folha - O sr. acha proporcional no cenário político hoje o peso do PT em relação ao cacife com que ele saiu da eleição? O sr. está satisfeito com a atuação do PT?
Lula - Acho que o PT não podia fazer mais do que o que ele está fazendo. Se o PT tivesse feito a oposição que as pessoas cobram do PT, teriam chamado o PT de louco, de sectário.
Folha - O PT não teria perdido o passo ao não perceber que é diferente fazer oposição a Fernando Henrique Cardoso e a Collor, por exemplo?
Lula - Não é igual, até porque parte da turma que está no governo agora é parte da turma que já fez oposição neste país. E há uma parcela da sociedade que tem mais dificuldade de ver isso.
Agora, está ficando claro para a opinião pública que o Fernando Henrique Cardoso não está deixando de fazer as coisas porque o PFL está no governo. O problema não é a cabeça do PFL. É a cabeça do Fernando Henrique Cardoso.
Ele acredita, como monetarista, que a única coisa que tem que fazer é estabilizar a economia, sem ter nenhuma política social.
Folha - O sr. tinha uma boa relação com FHC. Qual a sua avaliação dele hoje?
Lula - Frustrante. Cheguei a achar que agia daquela forma pelos compromissos com o PFL. Hoje estou convencido de que a cabeça dele é neoliberal. O mal que ele está causando ao Brasil pode ser irrecuperável.
Folha - Os núcleos do PT, que movimentavam o partido na década de 80, hoje são peças de ficção. O sr. concorda?
Lula - Eu digo isso em textos meus. Quando nós começamos o PT, tínhamos 15 sindicalistas que estavam tentando convencer os outros sindicalistas a entrar no PT. Hoje, muitos desses sindicalistas estão dentro do PT.
Folha - Enfim, os núcleos do PT viraram ficção?
Lula - Isso é parte dos meus discursos constantes no PT. Nós crescemos muito em nível institucional e eleitoral, mas decrescemos na nossa organização interna, da nossa nucleação, da militância sistemática dentro do PT.
Aquela pessoa que frequentava o PT todo dia e ainda queria mais um dia por semana para poder ir ao PT não frequenta mais.
Folha - Por que se afastou?
Lula - Primeiro porque, depois de 15 anos, é normal que o PT já não seja a novidade política que era quando nasceu.
Com eleição de dois em dois anos, um partido como o PT, que era calcado na sua organização de base, passa a se preocupar sistematicamente com a eleição.
Você tinha a militância viva do PT numa cidade e hoje ela está no gabinete do deputado...
Folha - Muitos petistas dizem que a luta interna chegou a um ponto insuportável. O sr. não errou na avaliação quando dizia que as tendências representavam a riqueza do partido?
Lula - Repito que o debate interno no PT é uma das nossas fontes de riqueza. O que é ruim é que a tendência deixe de ser apenas um ajuntamento de pessoas para debater determinados temas, ou para disputar cargo de direção, e passe a ser uma coisa que as pessoas tratam de forma prioritária em relação ao partido.
Folha - Hoje, como é que que o sr. acha que isso está?
Lula - Temos deficiências muito sérias. Estamos chegando num momento em que nós precisamos criar uma tendência chamada PT.
Folha - O que preocupa o sr., por exemplo?
Lula - Quando as pessoas se dirigem para as reuniões do PT apenas para consagrar o voto determinado lá fora, é um equívoco. Eu acho isso um absurdo para o PT e para as pessoas.
Folha - Como presidente do partido, o sr. não teve responsabilidade por deixar a situação chegar a esse ponto?
Lula - É bem possível que eu tenha tido responsabilidade nesse processo. Agora, é bem possível que, se as coisas não fossem assim, o PT não teria chegado aonde chegou, com a força que chegou.
Estou trabalhando para mudar e fazendo reivindicações para mudar. Agora, isso é um processo cultural, que você não faz com medida provisória. É um problema de discussão política, e eu quero abrir esse processo dentro do PT sem querer excluir ninguém.
A minha inconformidade na questão das tendências no PT é pelo fato de as pessoas prejudicarem as suas próprias cabeças e não irem para a reunião com flexibilidade para serem convencidas.
Folha - Como é que se chegou a essa relação de ódio?
Lula - Essa relação de ódio aparece no PT, mas ela existe em todos os partidos.
Eu tenho chamado a atenção dos companheiros. Se nós acreditamos no nosso discurso de que é possível criar uma nova sociedade e um novo ser humano, temos que mudar o comportamento.
Folha - Isso tudo não reforça a tese de que o PT está cada vez mais igual a todos os partidos, até nas ambições pessoais?
Lula - Não. Em alguns partidos a briga se dá por partilhas de poder. Em outros, por corrupção.
Folha - Esse caminho tem volta para o PT?
Lula - Espero que tenha.
Folha - Se não houver volta, o que o sr. acha que ocorrerá?
Lula - Se não houver possibilidade de reconstruir essa relação fraterna entre as pessoas, nós não temos como sair por aí vendendo a idéia de que é possível criar um mundo justo.
Podemos consertar isso. Vou dar um exemplo concreto, no caso da Luiza Erundina e do Aloizio Mercadante.
São dois quadros extraordinários. Se o partido não agir imediatamente e chamar os dois para estabelecer regras para a prévia que vai escolher o candidato à Prefeitura de São Paulo, daqui a seis meses poderá haver uma guerra.
Quero promover uma reunião com as direções, o Aloizio Mercadante e a Luiza Erundina, para estabelecer regras e um protocolo de intenções em que o Diretório Municipal vai coordenar as prévias e o candidato do diretório é o que vencer a prévia.
Folha - Fora da direção do PT, como será a vida do sr.?
Lula - Eu acredito que somente com uma grande organização do chamado setor excluído da sociedade é que a gente pode mudar o rumo do Brasil. E eu quero me dedicar a trabalhar essa organização.
Quero me dedicar a reorganizar o partido e a criar uma consciência de cidadania neste país.
Folha - Quer dizer, a saída da presidência é uma coisa certa?
Lula - Líquida e certa. É importante para o PT e para mim deixar a presidência.
Quero me embrenhar pelos sertões do Brasil e tentar discutir essa questão da cidadania.
Para fazer essa parte mais institucional, temos algumas dezenas de companheiros. Para fazer a parte de ter contato com o povo, eu acho que eu tenho mais condições.
Folha - O ex-deputado José Dirceu é o seu candidato para a presidência do PT?
Lula - É o meu candidato. Ele conhece como ninguém a máquina partidária, amadureceu muito e gosta de fazer isso.
O Olívio Dutra seria outra opção, mas ele é mais turrão do que eu e não será candidato.
Folha - Como o sr. vai lutar pelo que chama de extensão do direito da cidadania?
Lula - Vou começar pelo Vale do Jequitinhonha (MG). Vou montar acampamento numa cidade, levando junto comigo um educador, um médico sanitarista, um engenheiro agrônomo, um sindicalista, um representante da juventude.
Vamos fazer em cada cidade reuniões sobre cada área e tirar uma radiografia de cada cidade.
A partir daí, começar a discutir com as pessoas que muitas das coisas que elas estão reivindicando são coisas que já estão previstas em lei e que são direitos universais elementares que não chegam a todo mundo porque nós não temos organização para cobrar isso.
Se lá eu ficar sabendo que o grande problema da saúde é que falta um posto médico que custa, sei lá, US$ 10 mil, vou pegar um fax e mandar para o Jatene.
Folha - Não tem perigo de o sr. se tornar um despachante de nobres, mas pequenas causas?
Lula - Eu não sei no que eu vou me transformar. O que eu sei é que este país tem que acordar.
Folha - O sr. é candidato a presidente da República em 98?
Lula - Sou membro de um partido e tenho que levar em consideração a importância do momento em que você vai tomar uma decisão.
Se depender da minha vontade hoje, eu não serei mais candidato a presidente da República e nem a nenhum cargo eletivo.
Folha - O sr. acredita mesmo que o PT pode chegar à Presidência da República?
Lula - Lógico que tem chance. Até porque eu acho que está na hora de o PT acreditar nesse trabalho de base. Se nós tivéssemos em 1995 dado continuidade aos 15 anos do trabalho de fábrica que a gente começou a fazer em 85, possivelmente o PT hoje fosse o triplo ou quem sabe quatro vezes mais forte do que ele é.
Folha - Isso é o reconhecimento de como o partido atrofiou.
Lula - Eu não acho que o partido tenha parado. É que o partido, nos primeiros anos de vida, acreditava muito mais na organização de base e menos no institucional.
A partir de 85, o partido deu uma importância muito grande ao institucional e esqueceu a organização de base, e eu acho que nós precisamos dos dois.
Folha - Não é por que o país mudou? A conjuntura não pesa?
Lula - Não é porque o país mudou. O país mudou para algumas pessoas. Para a grande maioria do povo brasileiro o Brasil está pior.
A razão pela qual o PT nasceu, para colocar os excluídos na vida política do país, hoje é mais forte do que era antes.
Folha - O movimento sindical, como o PT, está burocratizado?
Lula - Existem vários problemas aí. Hoje ele é muito mais organizado que em 80. Estamos perdendo o trabalho de base como valor fundamental da existência de um sindicato.
Quando o dirigente chega ao sindicato, ganha carro e telefone e pode esquecer a sua origem. Em muitos sindicatos existem desvios.
Folha - Não existe um setor do sindicalismo que o usa como meio de ascensão social e às vezes chega até o banditismo?
Lula - Acho que seria prudente que os dirigentes sindicais não ficassem no cargo mais do que dois mandatos. Hoje, muitas vezes a briga pelo aparelho no sindicato é deformada. Há sindicatos pequenos em que os gastos que eles fazem numa campanha eleitoral é uma coisa exorbitante.
É preciso muita força ideológica para não permitir que a mudança de função mude sua cabeça. Mandato não é profissão. A pessoa não quer voltar para a base. A pessoa ganha R$ 500 na base e, na diretoria do sindicato, ganha mais R$ 500 de ajuda de custo.
Folha - Mas existe banditismo no movimento sindical?
Lula - Hoje muito mais forte do que já existiu. Mas é histórico do sindicalismo brasileiro.
Folha - O sr. está falando até de sindicatos ligados à CUT?
Lula - Aí vale para todos os sindicatos. Obviamente uma cultura mais forte desse banditismo você vai notar que é muito mais forte na Força Sindical.
Folha - A greve dos petroleiros levantou de novo a discussão sobre paralisação em setores essenciais. Como o sr. vê o fato de algumas categorias não levarem em conta o interesse da sociedade?
Folha - Vamos pegar algumas categorias específicas. Os petroleiros perderam no curto prazo, mas o Fernando Henrique Cardoso agiu de muita má-fé. O governo não cumpriu um acordo.
Tentou transformar uma greve econômica numa greve política, com a condescendência dos petroleiros, que colocaram na pauta a questão do monopólio.
Defendo o direito de greve para as categorias essenciais também. Mas as greves não podem ser as mesmas.
Se paro uma metalúrgica ou uma gráfica, não estou mexendo numa categoria essencial ou no material chamado ser humano. Se paro uma sala de aula, estou mexendo com o ser humano.
Tenho que pensar de qual forma vou fazer a greve para prejudicar politicamente o governo sem prejudicar minha base de apoio. É o grande desafio para pensar greves de condutores, metroviários, saúde, professores.

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