São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Remendo tributário

OSIRIS LOPES FILHO

No rescaldo das ambiguidades do governo federal em matéria de reforma tributária, há um dado marcante: a sua completa indiferença para o já consagrado na Constituição, principalmente em relação aos princípios fundamentais.
As formulações apresentadas ou em gestação tratam a Constituição como se fora um folhetim de edição periódica, a variar segundo os ditames da moda, sem uma orientação permanente.
O projeto de criação da Contribuição sobre Movimentações Financeiras constitui exemplo típico desse comportamento. Até o final de dezembro do ano passado vigia o IPMF (Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras). A sua instituição foi dificultosa.
Daí ter-lhe sido atribuída a provisoriedade, como fórmula para sua aceitação, que correspondeu apenas ao exercício de 1994, em face da decisão do Supremo Tribunal Federal, atribuindo-lhe a aplicação do princípio da anterioridade da lei.
Conseguiu o Executivo convencer o Congresso da sua necessidade, para suprir as dificuldades de caixa do Tesouro. Influiu, também, positivamente na sua aprovação, a adesão dos adeptos da corrente do imposto único, ávidos de acompanharem um experimento que poderia, no futuro, ser aproveitado para a implantação de sua utopia.
A instituição do IPMF exigiu que fosse aprovada emenda à Constituição, atribuindo-se competência à União para criá-lo, que o fez mediante lei complementar, logo editada.
Esse processo complexo de criação do IPMF deveu-se a obstáculos constitucionais. Com efeito, dispõe o seu art. 154, inciso 1, que a União pode criar novos impostos, por lei complementar, desde que sejam não-acumulativos e não tenham fato gerador e base de cálculo próprios dos impostos nela previstos.
Recentemente o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional o adicional ao frete da marinha mercante, classificando-o como tributo, da espécie de contribuição de intervenção no domínio econômico. Considerou ainda que não teria havido invasão de competência na área do ICMS.
Em síntese, começou a prosperar o entendimento de que criado um tributo, da espécie contribuição, poderia ter fato gerador e base de cálculo semelhantes aos dos impostos e ser acumulativo.
É o pensamento mágico a operar. Menos magia de fada, e mais magia negra.
Rebatizar imposto de contribuição constitui emplastro jurídico primário e precário. Seguramente não apresenta a habilidade e perícia técnica típica das cirurgias cardíacas, em que se notabiliza o ministro Jatene.
De qualquer sorte, é de se lembrar que a criação da contribuição sobre movimentações financeiras, mediante lei complementar, utilizando-se da faculdade prevista no art. 195, parágrafo 4º da Constituição, que possibilita a instituição de outras fontes de custeio para a seguridade social, aplicam-se as mesmas restrições previstas no art. 154, inciso 1, já referido.
Parece que o caminho a ser adotado será de emenda à Constituição. As dificuldades de tramitação serão idênticas às do IPMF. Depois, virão inevitavelmente as discussões judiciais.
O IPMF é bom exemplo. Quando o Supremo julgou sua constitucionalidade, adotou a tese de que é possível a ocorrência de normas constitucionais dotadas de inconstitucionalidade, quando ocorre ofensa a princípios constitucionais fundamentais. Foi o caso da proibição da cobrança do IPMF em 1993, por prevalência do princípio da anterioridade da lei e o reconhecimento da aplicação do princípio da imunidade recíproca.
Pode ser que, no final, essa tentativa de instaurar a contribuição apenas mudando o nome do IPMF tenha o mesmo significado e efeito da providência adotada pelo marido que era traído pela esposa no sofá da sala e simplesmente mandou jogar fora o sofá.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, advogado, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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