São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Quem tem medo da dívida pública?

FABIO GIAMBIAGI

Um marciano cartesiano que aterrissasse no Brasil e lesse os termos do debate recente sobre as contas fiscais imaginaria que, dada a frequente alusão ao desequilíbrio destas, a dívida pública teria explodido, atingindo uma percentagem elevadíssima do PIB.
Defrontado, porém, com a tabela anexa a este artigo, nosso marciano teria ficado perplexo, sem entender como a realidade pode ter se comportado de forma tão diferente em relação ao que caberia esperar.
Uma análise mais cuidadosa dos dados, porém, permite entender melhor o que aconteceu. A tabela mostra a dívida líquida do setor público no fim do ano em relação ao PIB, sendo a dívida medida a preços médios do ano, com base na multiplicação do coeficiente (IGP médio anual/IGP centrado no fim do ano) pela dívida de fim de período.
Qual a explicação para a queda relativa de quase 40% que a dívida pública sofreu ente 1989 e 1994? Há dois motivos.
O primeiro é a corrosão do valor real dos estoques. Em 1990/1991, houve uma subindexação dos títulos da dívida interna, devido à aceleração inflacionária do final do governo Sarney e dos meses posteriores aos Planos Collor 1 e 2. Só nos três dias de feriado bancário de março de 1990, com os preços "rodando" 3% ao dia, a dívida interna foi "comida" em 10%.
Adicionalmente, entre 1989 e 1994 a taxa de câmbio aumentou menos do que o IGP, implicando uma perda da importância da dívida externa. Por último, em 1994 o acordo desta diminuiu o seu valor em dólar, em valores absolutos.
O segundo motivo para a queda da dívida líquida do setor público relaciona-se com os fatores de fluxo. O "x" da questão, neste caso, é que no período 1990/1994 as Necessidades de Financiamento do Setor Público (NFSP) no conceito operacional foram, em média, de 0,6% do PIB, enquanto o fluxo de emissão de base monetária foi da ordem de quase 3,5% do PIB.
Sendo a equação de financiamento do déficit público NFSP = Emissão de base monetária + Variação da dívida do setor público, e sendo a emissão monetária maior do que o déficit, o resultado é que, invertendo os termos da equação, a variação da dívida é negativa e, portanto, o seu saldo cai, em termos reais.
Ou seja, a dívida pública foi sendo gradualmente monetizada para atender às necessidades de moeda transacional da economia, na medida em que a base monetária, embora tivesse caído como proporção do PIB, continuou aumentando em termos nominais.
Como o déficit era pequeno e menor do que as necessidades de emissão monetária, os agentes econômicos "sacavam" da sua conta credora junto ao setor público, que então diminuía em termos reais.
Na prática, desde 1991 houve dois processos paralelos que se confundiram: (i) uma queda da dívida pública líquida total, conforme indicado na tabela; e (ii) uma mudança na composição da dívida pública, devido ao acúmulo de reservas internacionais, responsável por uma forte redução da dívida externa líquida em dólar -que somou-se aos efeitos da menor relação câmbio/IGP e do acordo externo-, parcialmente compensada pelo aumento da dívida interna, para "enxugar" o efeito monetário associado à entrada de recursos externos.
O fato, porém, é que o incremento da dívida interna foi menor do que a diminuição da dívida externa, gerando a mencionada queda da dívida total.
Qual a relevância disso? O principal efeito do que foi acima explicado é que, para taxas de juros dadas, o fluxo da despesa financeira do setor público é hoje menor do que no passado.
O fato deixa em situação desconfortável os dois extremos do debate sobre a questão fiscal no Brasil. De um lado, os hiperortodoxos que advogam a necessidade de o país ter um superávit primário de 5% a 6% do PIB, como o que o México ou o Chile chegaram a ter por ocasião dos seus processos de ajuste, ignoram a queda da dívida pública e o efeito benéfico que isso tem em termos de redução da conta de juros, o que os leva a exigir um sacrifício fiscal muito maior do que o requerido pelas circunstâncias.
De outro, os hiper-heterodoxos que clamam por uma redução substancial da taxa de juros, em nome, entre outras coisas, do custo fiscal da política monetária, passam por cima do fato de que, havendo um superávit primário suficiente para impedir que a despesa de juros se transforme em aumento da dívida, a queda da relação dívida pública/PIB permite que, apesar das taxas elevadas, a conta de juros do setor público seja bem menor do que há alguns anos.
De fato, o fluxo de juros reais de todo o setor público -conceito NFSP-, que fora de 6,6% do PIB em 1989, caiu até a metade disso (3,3% do PIB) na de 1991/1994, mesmo excluindo o ano de 1990.
O resumo é: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem é preciso aumentar tanto as receitas e reduzir tanto as despesas para ter o superávit primário que querem alguns, nem as atuais taxas de juros dos títulos públicos implicam problemas tão graves, em termos fiscais, como alegam outros.
Por último, cabe registrar que, devido ao bom desempenho fiscal, a queda da dívida poderá se manter em 1995, em que pesem as taxas de juros. Se, além disso, leva-se em conta o crescimento do PIB, é possível esperar que a relação dívida pública/PIB do fim do ano seja menor que a do fim de 1994, o que reforça os argumentos aqui expostos.

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