São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Pessoa, personagem borgiano

``Que é que ocupa o centro do labirinto de Borges? As histórias que ele conta parecem fragmentos de romances, e, no entanto, como Hawthorne, a quem muito apreciava, Borges não escreve histórias romanescas, que dependem de encantamentos e de um conhecimento imperfeito.
Borges é cético, muito informado, e deliberadamente não tem a extravagância do romanesco, seu senso de derivar para além dos limites. Sua arte é muito cuidadosamente controlada e às vezes um tanto evasiva. Nem ele nem seu leitor podem perder-se em seus contos, onde tudo é calculado.
Um pavor do que Freud chamava de romance familiar, e do que se poderia chamar de romance familiar da literatura, limita-o à repetição e à superidealização do relacionamento escritor-leitor. Talvez tenha sido isso exatamente o que fez dele um pai ideal para a moderna literatura hispano-americana -sua infinita sugestividade e seu distanciamento de enredamentos culturais.
Contudo, ele pode estar condenado a uma eminência menor, ainda canônica, mas não mais central, na literatura moderna. Uma comparação de seus contos e parábolas com os de Kafka, lado a lado, não lhe é de modo algum lisonjeira, mas parece inevitável, em parte porque ele tão frequentemente invoca Kafka, de um modo ostensivo e implícito. O melhor de Beckett sustenta uma intensa releitura, o que Borges não sustenta. A astúcia de Borges é direta, mas não mantém uma visão schopenhaueriana com tanta força quanto pode fazer Beckett."
``Fernando Pessoa, como invenção fantástica, supera qualquer criação de Borges. (...) Por mais poderosos que sejam muitos versos de Pessoa, constituem apenas uma parte de sua obra; ele também inventou uma série de poetas alternativos -Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, entre outros.
(...) Pessoa não era nem louco nem ironista; é Whitman renascido, mas um Whitman que dá nomes ao `eu', ao `verdadeiro eu', ao `eu mesmo', e escreve maravilhosos livros de poesia por todos os três, além de um volume separado sob o nome de Walt Whitman.(...)
O verdadeiro eu de Whitman não escreveu `Leaves of Grass' e gozou o rústico Walt em `As I Ebb'd With the Ocean of Life', após sofrer seu estupro masturbatório em `Song of Myself'. A intuição de Pessoa ensinou-lhe que tipo de poema poderia ter escrito o Whitman eu mesmo: involuntário, a expressão do homem animal ou natural, livre da cultura, das lembranças e das representações passadas dos sentidos. Pode haver um tal poema? É claro que não, e Pessoa, é evidente, sabe disso; mas os poemas de Caeiro são uma fascinante tentativa de escrever o que não pode ser escrito."
Trechos de ``O Cânone Ocidental", de Harold Bloom

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