São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Segredo das palavras

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Segredos das palavras
Peter Burke reúne ensaios de história social da linguagem em "A Arte da Conversação"
Todos conhecem os versos da canção ``Língua" de Caetano Veloso: ``Está provado que só é possível/ filosofar em alemão".
Ao ler ``A Arte da Conversação", do historiador inglês Peter Burke, ficamos sabendo, entre muitas outras coisas, que a tese expressa por Caetano provém de um certo determinismo linguístico expresso por estudiosos como Fritz Mauthner e Benjamin Whorf, para quem as idéias fundamentais de um povo são moldadas pela estrutura de sua língua.
Teorias como essa são discutidas por Burke no primeiro e mais teórico dos cinco ensaios do livro (publicado na Inglaterra em 1993), que procura estabelecer as premissas de uma ``história social da linguagem". Grosso modo, a disciplina, segundo o autor, deve aproveitar as conquistas da sociolinguística e colocá-las sob uma perspectiva histórica.
Embora valorize o trabalho pioneiro, nessa área, de historiadores da escola francesa dos ``Annales", como Lucien Febvre e Marc Bloch, Burke considera que os historiadores em geral tendem a se aproximar do tema da linguagem -oral ou escrita- com uma perspectiva eminentemente utilitária (por exemplo, para a história política), sem encará-lo como um campo de pesquisa ``em si".
Aos trabalhos de estudiosos provenientes de outras áreas -linguistas, etnólogos, antropólogos-, por outro lado, costuma faltar justamente a dimensão histórica, a análise das mudanças das estruturas e formas de comunicação verbal ao longo do tempo.
Multidisciplinar por definição, a história social da linguagem deve levar em consideração os aspectos mais diversos da comunicação verbal: a transformação de uma língua através dos tempos, sua difusão geográfica, suas variedades sociais e regionais, a influência recebida e aportada a outras línguas e dialetos etc.
Depois desse ensaio, que serve como uma introdução teórica, Burke apresenta, nos quatro capítulos seguintes de seu livro, estudos históricos específicos. De certo modo, concretiza em ensaios ricos em erudição e inteligência as idéias debatidas anteriormente.
O primeiro desses ensaios é um ``esboço para uma história social do latim pós-medieval". Abarcando um período que vai desde o Renascimento até o século 19, estuda o complexo e contraditório processo que transformou o latim em ``língua morta" que entretanto ``vive" em um punhado de contextos (ou ``domínios de fala").
Ainda que o texto tenha um caráter indicativo (daí se apresentar como ``esboço"), Burke não deixa de lado nenhum aspecto da questão e recusa sistematicamente a facilidade das idéias feitas.
A história do latim, aliás, é rica em paradoxos. O autor se concentra em três deles.
1) ``Os protestantes que estavam empenhados na rejeição do latim na Igreja eram geralmente melhores latinistas do que os católicos empenhados em sua manutenção"; 2) ``o declínio do latim deveu-se, principalmente, não aos oponentes da Antiguidade Clássica, mas a seus defensores, os humanistas, cuja insistência em relação a padrões clássicos transformou-o de uma língua viva em uma língua `morta' "; 3) ``embora declarado `morto', o latim (...) permaneceu útil, vigoroso de fato, em domínios específicos e em determinadas partes da Europa ao longo dos séculos 18 e 19".
No segundo ensaio monográfico do livro, ``Língua e Identidade no Início da Itália Moderna", Peter Burke está em seu elemento. O período, o país e o tema das diversas culturas que nele interagem são velhos conhecidos do autor.
O estudo se concentra nas ``diferentes formas do italiano", ou seja, os diversos socioletos, jargões e variantes falados e escritos nas várias regiões da península itálica do século 14 em diante.
Um dos casos mais pitorescos é o da gíria utilizada por mendigos e ladrões como forma de forjar ao mesmo tempo uma identidade de grupo e uma oposição ao restante da sociedade. Diz o autor: ``Segundo o `Nuovo Modo di Intendere la Lingua Zerga' (1545), por exemplo, ladrões eram `pescadores' (`pescatori'), ou `carpas' (`carpioni'), ao passo que falar era `cantar' (`canzonare') e o próprio jargão era conhecido como `contraponto' (`contrapunto').
Talvez não seja por acaso que até hoje, na gíria da Máfia e mais ou menos de todos os criminosos, ``cantar" seja sinônimo de ``delatar" ou ``confessar".

Conversação e silêncio
O capítulo seguinte, ``A Arte da Conversação no Início da Europa Moderna", passa em revista os saborosos manuais de regras de conversação que proliferaram na Europa entre os séculos 17 e 19.
Nesses manuais se definia os assuntos que deviam ser abordados em cada circunstância, o que as mulheres e crianças podiam dizer, as formas de tratamento, os termos proibidos, o ritmo da conversa etc.
Mas Burke não se restringe, é claro, a tais manuais. Está consciente, de resto, de que eles se referem a uma situação ideal (segundo propósitos determinados) e portanto não podem ser tomados como retratos do que de fato ocorria.
O espectro de seu texto é muito mais amplo, a começar da busca das origens da própria noção de ``conversação". Ele nos conta, por exemplo, que -em latim, em italiano e em inglês- o termo se referia mais que à conversa propriamente dita. Era quase um sinônimo de ``relações pessoais". Na Inglaterra, ``conversação ilícita" significava adultério e servia para justificar o fim de um casamento.
Outro aspecto interessante do ensaio é mostrar que até filósofos como Bacon e Locke e escritores como Jonathan Swift escreveram sobre a ``arte da conversação".
O último e sugestivo ensaio, sobre o ``silêncio no início da Europa moderna", é um complemento ao anterior. Nele, contra a compreensível carência de fontes sobre o assunto, Burke investiga o sentido do silêncio em cada situação social, região e época.
Embora o autor só tenha esboçado ``anotações para uma história", há belos ``insights", como a idéia do hiato entre ``o norte mais silencioso, controlado, individualista, democrático, capitalista e frio, e o sul mais conversador, espontâneo, turbulento, familiar, feudal e caloroso". Para nós, meridionais, a palavra é de ouro.

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