São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Sujeitos em busca de um lugar

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No novo livro, "Modos de Subjetivação no Brasil e Outros Escritos", Luiz Cláudio Figueiredo retoma as questões à respeito da subjetividade postas em seu trabalho anterior, "A Invenção do Psicológico - Quatro Séculos de Subjetivação (1500-1900). O desafio é o de aplicar as categorias gerais das subjetividades ocidentais à particularidade da cultura brasileira. Como seria de esperar, a tarefa é bem-sucedida. Reconhecemos, no autor, as características de sempre: criatividade, inteligência e enriquecimento teórico dos temas que aborda.
Em linhas gerais, o tratamento do assunto apóia-se na divisão feita por Louis Dumont entre o holismo e o individualismo culturais. No holismo, os indivíduos empíricos são, sobretudo, representados como identidades posicionais, isto é, como identidades cujo valor é dado pelo lugar que ocupam na hierarquia estratificada da sociedade; no individualismo, o valor da identidade individual é dado, sobretudo, pela idéia de autonomia em relação ao todo. O indivíduo do "individualismo" concebe-se como algo que pré-existe ao social, que, por sua vez, deve organizar-se para atender, realizar, incentivar, exprimir etc., suas potencialidades pensadas como "naturais" ou "intrínsecas".
Ao sistema holista de hierarquização social corresponderia, grosso modo, a idéia de "indivíduo como pessoa"; ao sistema individualista, a idéia de "mero indivíduo". No primeiro caso, a pessoa, sempre que age ou decide, conta com o poder ou o peso do estatuto social na ação ou decisão tomadas; no segundo caso, o mero indivíduo busca ou é obrigado a orientar suas condutas, em função de leis abstratas e impessoais, a princípio, válidas para todos.
Luiz Cláudio complexifica este esquema, mostrando que no sistema individualista existem várias formas de "individualização": o indivíduo do liberalismo; o indivíduo do romantismo e o indivíduo disciplinar, ou seja, aquele imaginado por Foucault como sendo o produto da intervenção sobre os sujeitos dos dispositivos disciplinares. A partir destas noções, certos fatos da cultura brasileira são interpretados como resultado do movimento dos sujeitos de um para outro sistema de ordenação de identidades ou das idas e vindas da pessoa para o indivíduo e vice-versa. Figuras sociais como o "cê-dê-efe", o "caxias", o "puxa-saco", o "malandro", o "transgressor sistemático" ou situações conflitivas como a do impeachment, episódios de corrupção etc. são vistos como acomodações, deslizamentos, superposições ou tensões entre universos de valores em competição.
O autor é didático, claro, e conduz o estudo dos temas com a moderação crítica exigida de trabalhos universitários de qualidade. Mas cada um tem seu gosto. E resenha alguma, por neutra que pretenda ser, deixa de refletir as preocupações pessoais de quem a escreve. Chamo, assim, a atenção do leitor para alguns tópicos ou problemas teóricos que me pareceram particularmente interessantes.
Dentre os estudos feitos, o que toma por objeto a militância como forma de vida, pareceu-me particularmente feliz. Ao falar da militância, em especial da militância política de esquerda, Luiz Cláudio acrescenta elementos que se somam ao que Hannah Arendt disse sobre o totalitarismo e a burocracia ou ao que Contardo Calligaris pensou sobre a natureza das perversões sociais.
Observando como a máquina da militância funciona, observa-se, ao mesmo tempo, como ela articula figuras subjetivas do individualismo liberal, romântico e disciplinar. Lido de outra forma, nenhuma idéia ou ética individuais são, por elas mesmas, condição de imunização contra formas perversas, burocráticas ou outras de deliberação moral e ação social.
As melhores intenções podem caber nos piores resultados prático-morais. Basta que a engrenagem social induza os sujeitos a se desvincularem dos fundamentos morais da tradição a qual pertencem e que lhes permitiu pensar o que pensam e agir como agem. No caso, a saída militante como modo de individualização foi, na opinião do autor, um efeito da pobreza ou da inexistência de uma esfera pública voltada para o bem comum.
É neste contexto que preferências pessoais ou objetivos de auto-realização individuais podem vir a substituir projetos políticos e tentar impor-se como soluções coletivas, pela força ou violência feitas a si e aos outros militantes da mesma causa. Diz Luiz Cláudio: "A militância figura como sintoma de toda uma época e de todo sofrimento que lhe é inerente.
Penso, entretanto, que a passagem do plano sociológico ou da literatura para o plano da história da subjetividade necessitaria de mediações teóricas menos bruscas. Não saberia dizer qual o alcance e o valor da noção de "idéias fora do lugar" para a análise da realidade cultural brasileira ou para o terreno da literatura, embora, como Luiz Cláudio, admire a inventividade de Roberto Schwarz.
Mas, no que concerne à subjetividade, certas questões merecem ser melhor investigadas. O que significa dizer, por exemplo, que uma "idéia fora do lugar" pode funcionar como "ornamento" para a construção do sujeito? O sentido da palavra ornamento torna-se impreciso. Se a palavra "ornamento" quer dizer algo de acessório, dispensável etc., como explicar a "realidade subjetiva" de quem se sente, se diz ou se define como liberal, embora escravagista, ou como "indivíduo", embora comportando-se como "pessoa"?
Uma vez que certas crenças, desejos ou intenções foram internalizados e constituem subjetividades, a idéia de "idéia fora do lugar" atribuída a certos predicados subjetivos, dificilmente se justifica. A impressão que pode ficar é a de que existe uma identidade subjetiva onde o atributo responsável pelo que existe de fundamental na identidade é descrito como ornamental.
Mas como alguma pode, ao mesmo tempo, ser ornamental e marcar tão decisivamente o sujeito, a ponto de levá-lo a crer que é o que não é? A menos que se tenha a idéia de que o sujeito está "alienado de sua verdadeira identidade", a distância entre o que é ornamental e o que não é ornamental perde grande parte de sua importância.
Outra ambiguidade da noção vem do fato de tornar certos contextos de sentido eticamente normativos em relação a outros, sem que a normatividade implicitamente postulada seja enunciada. Quando, por exemplo, diz-se que, no Brasil, a psicanálise "está fora do lugar", e ilustra-se o caso, mostrando que na Europa existe "filiação psicanalítica" enquanto no Brasil existe "apadrinhamento psicanalítico", corre-se este risco. Como o termo "apadrinhamento" é um termo moralmente desqualificado, a descrição da psicanálise brasileira torna-se, automaticamente, julgamento moral de uma prática teórico-clínica considerada "inferior a sua congênere européia.
Pode-se dizer, por exemplo, que a psicanálise, desde que saiu de Viena, nunca mais encontrou seu verdadeiro lugar ou que, nos Estados Unidos, também estava "fora de lugar", como já pretenderam alguns teóricos etc.
Resumindo, estas questões prático-teóricas não são apenas questões do autor, mas de todos os que estão lidando com o tema das subjetividades modernas. Remetendo-as a Luiz Cláudio, estou simplesmente remetendo-as a um autor com indiscutível competência para propor e solucionar enigmas desta área de conhecimentos. Mais do que uma restrição, penso que os problemas surgidos são um indício da vitalidade do texto. "Modos de Subjetivação no Brasil e Outros Escritos" é um livro indispensável para os que querem pensar de maneira renovada sobre o que somos ou imaginamos ser, no mundo dos individualismos brasileiros. Leitura obrigatória, sobretudo para os profissionais das disciplinas "psi".

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