São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A mania da fragmentação

SHEILA SCHVARZMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1987, François Dosse causou polêmica com seu "A História em Migalhas", um estudo minucioso, mas, sobretudo, crítico da Escola dos Annales, um dos marcos da historiografia moderna.
Em 1991, foi a vez de "História do Estruturalismo" rever um movimento central do pensamento francês contemporâneo.
Ex-militante trotskista formado pela engajada Universidade de Paris 8 (ex-Vincennes), Dosse critica sobretudo a expulsão da dimensão humana destes pensamentos que se comunicam e se completam, sobretudo nas décadas de 60 e 70.
Em entrevista exclusiva à Folha, por telefone, antes de embarcar para uma visita ao Brasil, onde dará uma palestra na Folha (leia texto nesta página), Dosse falou de suas obras, mas sobretudo do pensamento contemporâneo francês que, enterrando ou assimilando as contribuições destes movimentos, parece ir em direção a novos paradigmas, onde o vivido e a construção de um "horizonte" de espera em relação ao futuro é um dos principais eixos.

Folha - Seus trabalhos são marcados pela polêmica. Ter participado do movimento de Maio de 68 tem algo a ver com isso?
François Dosse - Em maio eu ainda estava no liceu, mas participei ativamente de todas as manifestações de rua. Em agosto o acaso quis também que eu, que tinha então 17 anos, acompanhasse o meu pai a uma viagem à Tcheco-Eslováquia. Ele pertencia ao Partido Comunista e foi fazer uma reportagem para uma revista entusiasta de Alexander Dubcek (ex-líder eslovaco) e de sua Primavera de Praga. Desta forma vivi também em 68 a ocupação russa de Praga.
Em Paris parecíamos fazer a revolução, mas em Praga os canhões atiravam realmente, não era só gás lacrimogêneo. Vivi a resistência de todo um povo contra o Exército russo. Creio que ter vivido isso aos 17 anos foi fundamental para constituir uma sensibilidade para o político. Depois fui para a Universidade de Vincennes, a escola produto de Maio de 68, onde cheguei no final desse mesmo ano.
Folha - Quando se deu a definição pela história?
Dosse - Vincennes era uma universidade experimental pluridisciplinar. Escolhíamos os cursos como num cardápio, indo atrás de diferentes professores, em departamentos diferentes. No início me inscrevi em sociologia, mas frequentava a filosofia, a economia política, a história, e não fazia mais cursos por que era militante político. Só no fim do primeiro ano é que escolhi história, depois da leitura do "18 de Brumário" de Marx. Foi uma escolha política.
Folha - E o estudo dos "Annales"?
Dosse - Em 1973 tomei contato com o texto "O Território do Historiador", de Le Roy Ladurie, sobre a imobilidade da história. Esse livro me decepcionou muito.
Folha - Mas Le Roy Ladurie não significava todo o pensamento dos "Annales".
Dosse - Sim, mas ele era do comitê de direção e era um período triunfante da revista porque em 1974 se publica "Fazer a História". É quando os "Annales" teorizam a fragmentação da história, e absorvem todas as ciências sociais sob a figura tutelar de Fernand Braudel. Decidi então procurar Jean Chesnaux, que era um dos únicos que criticava os "Annales". Ele publicara "Du Passé Faisons Table Rase", uma obra que abordava a posição hegemônica dos "Annales", o seu poder nos órgãos de comunicação e editoras. Eu queria combater a encarnação deste poder institucionalizado.
Folha - Mas suas críticas não paravam por aí...
Dosse - É verdade. No plano teórico, epistemológico, eu criticava a noção de história imóvel, a negação do acontecimento, a longa duração, a determinação da geo-história. Isso se chocava com tudo o que era descontinuidade, ruptura, fato. Para quem, como eu, tinha vivido Maio de 68, expulsar os acontecimentos e a dimensão propriamente humana da história, parecia impensável.
Folha - Por que o senhor considera que a fragmentação da história pode ser perniciosa se, ao mesmo tempo, revelou tantos horizontes e sujeitos antes desconhecidos ou ocultados?
Dosse - Há duas coisas. De um lado a fecundidade desta escola, mesmo do meu ponto de vista, que é ambivalente. É verdade que a fragmentação e a ampliação do campo do historiador permitiu o conhecimento de novos objetos, de novas problemáticas, uma interdisciplinaridade fecunda com as ciências sociais. Por outro lado, a expansão do território do historiador pode conduzir à compartimentação da disciplina histórica dentro dela mesma, pois cada especialista se preocupa com seu pequeno objeto e corre o risco de se confinar nele, perdendo a dimensão da globalidade, e a preocupação interpretativa, fazendo um trabalho estéril. Esse risco de fragmentação, aliás, foi percebido pelos historiadores dos "Annales" em 88 e 89.
Folha - E a que caminhos estas constatações conduziram?
Dosse - Desde o início dos anos 90, os "Annales" estão indo em direção a um quarto momento, com o qual me identifico. Há mudanças pragmáticas e hermenêuticas que reapropriam os atores e o agir. Tanto que em 1994 inclusive o título da revista mudou. Não é mais "Annales - Économie, Sociétés, Civilisations", mas "Annales - Histoire, Sciences Sociales". A história volta para o título da revista, o que é significativo.
Folha - Há então uma mudança crítica nas ciências sociais hoje na França?
Dosse - Em setembro lanço o livro "L'Empire des Sens - l'Humanisation des Sciences Humaines". Em entrevistas com historiadores, filósofos, antropólogos e sociólogos é possível perceber a gestação de um novo paradigma que se alimenta da semântica da ação, da fenomenologia, da tradição hermenêutica. Para mim o filósofo que está na base destas mudanças interpretativas é Paul Ricoeur, por sua atenção à escrita da história, da poética do saber, idéias que ele trabalhou desde os anos 50, passando por "Tempo e Narrativa" nos anos 80.
Folha - Mas não há influência dos historiadores ingleses, americanos, italianos?
Dosse - Claro, no meu livro há um capítulo chamado "Desvio Americano". Desse desvio faz parte o próprio Ricoeur, pois ele é o herdeiro da filosofia continental -Edmund Husserl (fundador da fenomenologia) essencialmente- mas também por que ensinou em Chicago e dialogou com a filosofia analítica, com Hayden White, que ele tornou conhecido na França. Há uma confluência, que Ricoeur encarna, entre estas influências e a tradição historiográfica francesa.
Folha - E o interesse pela esfera do político está voltando?
Dosse - Aí há uma mudança radical. Desde o início a política foi negada pelos "Annales". A história séria devia estar fora dessa esfera. Desde os anos 80, há uma história política que volta renovada pelo diálogo com as ciências sociais, com novos paradigmas, voltados para o estudo das sensibilidades, das culturas, que procuram um discurso global da sociedade sem a pretensão de ser a chave da explicitação do sentido da história como foi a economia, durante um bom tempo.
Folha - O sr. fez uma minuciosa "História do Estruturalismo". O que foi o estruturalismo para a França, a partir dos anos 50?
Dosse - O estruturalismo foi a senha que permitiu à antropologia, à linguística, à psicanálise e à sociologia encontrarem o seu lugar institucional diante da barreira da Sorbonne. A vivacidade da vida intelectual passa para a rua, para a imprensa, onde ocorrem polêmicas violentas, e não mais pela universidade. E os estudantes se reconheceram nesta revolução intelectual, já que era uma filosofia da dúvida, do desvendamento, da crítica, da desmistificação da ideologia dominante, sob a idéia de que o discurso é a expressão da má-fé.
Folha - Essa idéia de desvendamento, que se tornou central, já estaria na base do pensamento estruturalista?
Dosse - O estruturalismo é uma filosofia da dúvida alimentada por um pessimismo histórico -convém lembrar que seus mais importantes membros: Lévi-Strauss, Lacan, Foucault, Barthes foram marcados pela Segunda Guerra Mundial, pelo questionamento ao Iluminismo, rejeitando seu otimismo. Estávamos vivendo a descolonização, daí a rejeição do eurocentrismo e a valorização do Outro.
É o momento da valorização dos contrários: a criança ao invés do adulto, a loucura ao invés da razão, o selvagem ao invés do civilizado, como se a verdade estivesse nesta inversão. Valoriza-se o inconsciente contra o manifesto.
Folha - Como numa inversão psicanalítica?
Dosse - A grande lição do estruturalismo foi mostrar que não há comunicação transparente, que há sempre um outro. Não se pode mais ser eurocentrista como antes, pois se reconhece que existem pluralidades de destinos históricos e não há modelo explicativo que sirva para todos. As contribuições do programa estruturalista estão enraizadas.
Folha - Com os 50 anos do final da Segunda Guerra, este ano está sendo muito marcado pelas recordações?
Dosse - Veja, estas comemorações são importantes porque é necessário que se fale do que ocorreu, sobretudo aos jovens. Por outro lado, há uma doença francesa que chamo de "comemorite" aguda. Comemora-se tudo. Pierre Nora fala mesmo em tirania da memória, de um funcionamento dos meios de comunicação sobre as comemorações, sobre as relações com a memória. Hoje não se pode fazer nada sem que haja um aniversário, uma data redonda.
Como o futuro é imprevisível, a sociedade se volta para o passado sem saber exatamente o que tomar. Isso é um sintoma de pane da nossa sociedade. Esta relação entre história e memória é apaixonante pois redefine o que é um acontecimento. A memória é um problema fundamental da história.
Folha - Em vista disto, qual é o papel do historiador hoje?
Dosse - Essa função está mudando porque ela não existe sozinha, ela anda junto com as outras ciências sociais. Há várias funções, como responder às teses negacionistas, que tentaram provar a inexistência das câmaras de gás, por exemplo. O historiador tem o dever de memória -ele deve lembrar certas coisas, ser a garantia do contrato de verdade contra aqueles que querem negar ou manipular a história.
Função cívica, política e ética. A outra função é trabalhar com as outras ciências sociais no nosso espaço de experiências para construir, segundo a definição de Kosellec, o horizonte de espera, construir o futuro.
Folha - Construir um horizonte de espera?
Dosse - Sabemos hoje que o futuro não está pré-escrito, temos que dar uma inteligibilidade ao vivido, já que não acreditamos mais, como se acreditou, eu inclusive, que a história tem um sentido. Hoje este sentido está por ser construído, e ele nos reenvia ao nosso presente. Temos então que torná-lo inteligível para encontrar os eixos das construções futuras de uma sociedade melhor, mais justa. O historiador deve ser o elo desta passagem. Agora não sabemos exatamente o que buscar no passado para construir o futuro, mas o que sabemos é que por causa disso o historiador deve estar muito atento ao presente, o presente é a categoria mestra para articular um futuro possível.

Texto Anterior: BRUXARIA
Próximo Texto: Entenda o projeto dos Annales
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.