São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Um clásico sai do esquecimento

GABRIEL COHN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tradição do humor judaico traz a anedota do vendedor de cavalos que tenta convencer o cliente: "Com este animal, se você sair daqui às 5h da madrugada, às 5h30 estará em Odessa". "E o que farei às 5h30 em Odessa?", retruca o outro.
Ao organizar a sua notável coletânea sobre o esquecido clássico da sociologia Ferdinand Tönnies, algo do gênero deverá ter passado pela cabeça de Orlando de Miranda. Afinal, mais do que oferecer o instrumental básico "Para Ler Ferdinand Tönnies", como indica o título do livro, trata-se da cuidar da questão mais funda de "por que ler Tönnies".
A tarefa, que já seria difícil mesmo se multidões de leitores clamassem por material de apoio, revela-se assim duplamente espinhosa. Torna-se necessário partir praticamente do zero. Tudo deve ser oferecido: textos introdutórios sobre o autor e sua obra, comentários mais avançados e ainda textos do próprio autor (já que não se encontram disponíveis).
Acima disso tudo, convém que o próprio organizador tenha uma presença forte, com argumentos vigorosos e favor da relevância do autor apresentado. Do contrário não há como convencer o leitor de que o esforço vale a pena. É preciso reconhecer que o livro oferece tudo isso. As consequências são sérias. Não há mais desculpas para não estudar Tönnies.
Junto com Max Weber e Georg Simmel, Ferdinand Tönies forma a tríade dos grandes mestres da sociologia alemã na virada do século 19 para o 20. Na sua longa vida, de 1855 a 1936, foi testemunha de todos os grandes momentos da consolidação da Alemanha como potência européia, de Bismarck a Hitler. Opôs-se energicamente ao nazismo, e pagou por isso.
Sua imagem como intelectual é confusa e repleta de mal-entendidos, como se demonstra e se tenta corrigir no livro. A confusão começa com o seu célebre par conceitual, "comunidade" e "sociedade". Embora fosse um crítico da sociedade e pudesse dar a impressão de uma mera defesa da comunidade, não se trata disso. Não estamos diante de um nostálgico, muito menos de um reacionário, nem mesmo de um "anticapitalista romântico" (como queria Lukacs, em texto reproduzido no livro e duramente criticado). Aliás, o social-democrata Tönnies podia ser muitas coisas, menos romântico. É visceralmente um clássico.
Grande estudioso de Hobbes, suas referências básicas, fortemente contrastantes, são o racionalismo seiscentista e o historicismo e o organicismo novecentistas. Na primeira, ele vai buscar a concepção mecânica do mundo social, mas já despida do atomismo individualista hobbesiano e aplicada à sociedade e não ao Estado. Da segunda, obtém a concepção orgânica para conceber a comunidade e a ênfase na história para pensar a dinâmica das relações entre comunidade e sociedade. Daí a tensão interna no seu pensamento, tão bem apontada por vários autores no livro, a começar pelo seu organizador.
Tönnies busca diretamente na sociabilidade (e não nos indivíduos) os princípios que sustentam a convivência humana, e os encontra na comunidade e na sociedade (mais exatamente, nas duas formas de "vontade" que as informam). Mas nem a pura identidade/aproximação entre os homens na comunidade nem a sua pura diferença/separação na sociedade resolvem o problema da sociabilidade. Comunidade e sociedade são conceitos relacionais.
Trata-se de princípios fundantes da convivência humana, que se pressupõem mutuamente, numa relação tensa. É com base nisso que Orlando de Miranda prefere aproximar Tönnies de Marx mais do que de autores como Weber (com quem realmente tem pouco a ver) ou Durkheim (que é um interlocutor real), e vê nele uma impregnação dialética mais acentuada do que qualquer outro comentarista.
Tönnies é um autor difícil, cheio de asperezas. Há na sua obra um ponto central que leva ao desespero os tradutores e comentaristas. Trata-se da distinção entre as duas formas de vontade que correspondem aos princípios da comunidade e da sociedade. A dificuldade maior reside naquela que informa a sociedade, designada pelo termo "Kürwille". O organizador comenta e critica as soluções geralmente adotadas para traduzir esse termo. Mas talvez coubesse enfatizar um pouco mais a sua afinidade nuclear com a idéia de uma vontade "eletiva", ou seja, que escolhe (por exemplo, entre meios para atingir um objetivo proposto).
Estamos diante de um livro feito com muito cuidado e, sobretudo, com muita garra. É evidente a convicção do seu organizador de que vale a pena o esforço de ler Tönnies, hoje. Tendo em vista os problemas atuais, que se traduzem em debates como o entre "comentaristas" e "liberais" no campo ético-político, é bem o caso de aceitar o desafio.

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