São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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A morte como ela é

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Numa época em que a guerra ganha cores de videogame nas transmissões de TV, em que a arte pinta uma realidade cada vez mais mórbida e em que a Aids aumenta as páginas de obituário, vem a calhar o lançamento de ``Como Morremos", de Sherwin B. Nuland.
O livro, que a editora Rocco acaba de publicar em ótima tradução, é escrito com serenidade e objetividade muito bem-vindas. Não à toa ganhou em 1994 o prestigioso National Book Award (prêmio nacional do livro).
A idéia do dr. Nuland, um professor de cirurgia e história da medicina da Universidade Yale (EUA), é simples, uma idéia-mãe: descrever clinicamente as maneiras como o homem vai ``estudar a geologia dos campos-santos", na frase de Machado de Assis.
Tabu dos tabus, esse assunto em geral recebe o tratamento impressionista ou metafísico dos pensadores e poetas. Nuland evitou isso, sem se limitar às tecnicalidades.
Sua principal reflexão diz respeito a uma questão que a qualquer pessoa já ocorreu: o que se pode fazer para retardar a morte? Uma questão que o biólogo americano Stephen Jay Gould abordou de modo brilhante num ensaio.
Gould contou que, há cerca de 15 anos, descobriu que tinha câncer. O médico prognosticou: ele teria um a dois anos de vida, não mais. Mas, como se sabe, continua por aí, forte e sacudido.
O que lhe deu essa ``sobrevida"? Gould não estava certo da resposta, mas desconfiou de que deve haver uma correspondência entre a força de vontade e o sistema imunológico de uma pessoa.
Traduzindo: o desejo consciente de permanecer vivo deve produzir substâncias químicas que ampliam a defesa do organismo. ``O segredo é manter-se ativo", escreveu Gould de sua própria experiência.
Nuland também acha que a interação existe, mas diz que ainda não se sabe como ela funciona e afirma que, a julgar pelos pacientes que teve, a receita de Gould serve a poucos, ``pessoas muito especiais". Nuland não conta o caso de Gould, mas certamente o incluiria nessa elite.
Para discutir a morte, Nuland discute doenças mortais. Explica o que é mal de Alzheimer (que hoje atinge 4 milhões de americanos), infarto, isquemia e outras coisas com extraordinário didatismo (define angina, por exemplo, como ``uma cãibra do coração").
No capítulo dois, ``Um coração -e como ele falha", mostra que a arteriosclerose (endurecimento das paredes das artérias) é a principal razão das mortes por falha cardíaca. Uma vez detectada, resta pouco a fazer, diz Nuland.
Mas o pouco deve ser feito, continua. Nuland, que é bem crítico quando fala de médicos ao longo do livro, acha que o tratamento não deve ser um padrão geral: cortar gordura, fazer exercício, etc.
Diz que há vários tipos de estresse, tantos quantos há de personalidades, e que o médico precisa conhecer o paciente antes de submetê-lo a uma fieira de privações.
Mas não confunda o livro com esses de ``auto-ajuda". Nuland não pretende enganar os leitores com conselhos otimistas. No capítulo ``A Casa dos Setenta", por exemplo, pinta um quadro dolorosamente realista sobre a velhice.
Para ele, as pessoas na faixa dos 75 anos já não podem fazer muito para ``evitar a morte", salvo não sofrer por antecipação (como mostra no capítulo ``Assassinato e Serenidade"). O coração já não tem força para bombear, as células cerebrais já estão desgastadas. ``Para cada década depois dos 50 anos de idade, o cérebro perde 2% de seu peso", escreve Nuland.
Esse tipo curioso de informação é um dos atrativos do livro. No mesmo trecho, por exemplo, ele conta que, na perda dos neurônios pelo envelhecimento, as áreas altamente intelectuais do córtex são as que apresentam perda menor. Ecoa assim o adágio: conhecer é viver.
Outra qualidade do livro é sua atitude, por assim dizer, respeitosa em relação à morte. No capítulo sobre Alzheimer, fica clara a noção de Nuland de que a morte não faz anúncios muito luminosos.
Em outros pontos, ele é mais otimista, como nos capítulos sobre Aids e câncer (leia texto ao lado).
Às vezes o capítulo não está à altura do assunto, como o que trata de suicídio e eutanásia -os quais Nuland repele. Mas há descrições precisas de como cada modalidade de suicídio (enforcamento, afogamento, barbitúricos, etc.) mata.
E, no conjunto, o grande mérito do livro está na visão equilibrada. Nuland surpreende por não ter o comportamento tipicamente americano de que ``para tudo há solução", de que a ciência pode prorrogar qualquer problema e de que receitar bem uma pílula é a única responsabilidade do médico.

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