São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Entenda o autor

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Certa noite de verão, em 1967, Harold Bloom teve um pesadelo. Sonhou que estava sendo sufocado por uma grande criatura alada. Levantou-se, lavou o rosto e começou a escrever ``A Angústia da Influência" (ed. Imago), até hoje seu livro mais importante.
A criatura alada, no livro, aparece como o ``Querubim Cobridor", tomado de empréstimo ao poeta romântico Blake. Serve de símbolo à sensação angustiada de todo poeta, face ao peso dos precursores. A poesia não é outra coisa senão a tentativa do poeta de criar um lugar para si mesmo, lá onde não há mais espaço: na literatura. Para Bloom, portanto, a história literária é indistinguível da influência -das distorções e transferências na relação entre um poeta e seu precursor.
Todo poeta nasce da relação com outros poetas e todo poema é a leitura de um outro poema, anterior. Mas esta não é uma leitura imparcial, porque o poeta forte está sempre se lendo a si mesmo, na obra dos outros. Vale dizer que não existem ``poemas" isolados, mas tão-somente relações entre poemas. Assim como não existe leitura, mas ``desleitura" -o deslocamento de uma obra anterior pela nova. O autor ``forte" é aquele capaz de inverter causa e efeito, criando a ilusão de que ele mesmo é o precursor do seu precursor.
Cada novo autor torna-se, ele mesmo, um ponto de referência não só para as obras do futuro, mas também do passado. Como já escrevera Jorge Luis Borges, depois de Kafka, há autores kafkianos por toda a história da literatura. Bloom reconhece Borges como um antecessor, mas não aceita o ``idealismo estético" do autor argentino. A criação do precursor, para Bloom, não pode ser limpa de rivalidade e polêmica: ``Todas as coisas já têm nome. O esforço de apagar esses nomes é uma incitação às verdadeiras batalhas combatidas sob o estandarte da influência poética, guerras declaradas pela perversidade do espírito contra a riqueza reunida, a riqueza da tradição" (Introdução a ``Yeats", de 1970).
Se o significado de um poema é outro poema, se cada poema é um ``ato de leitura" -menos um objeto do que um movimento em relação a outro poema anterior-, então a poesia não difere, essencialmente da crítica. Da mesma forma que a crítica é, ou deveria ser, poesia em prosa, neste sentido específico de ``poesia". Criação literária e leitura passam a ser sinônimos.
Questões de influência estão intimamente ligadas à história literária. Para Bloom, a influência é a própria força de formação do cânone. A resposta à pergunta ``quem canonizou Milton?" é, em primeiro lugar, o próprio Milton (ao se constituir como poeta), mas também outros poetas (ao fazerem da sua própria poesia uma maneira de resistir ou se desviar de Milton).
É para a historiografia, portanto, que tendem a convergir os caminhos da influência. Da perspectiva aberta pelos trabalhos de Bloom, fica difícil manter padrões tradicionais de período, estilo, ou mesmo de autor, contestados ali pela exposição de uma ``vida privada" dos textos. Seu livro mais recente, sobre o cânone, foi escrito como uma reação às condições particulares da cultura e da política americana hoje; nem por isto fica menos claro esse arco de 20 anos e 15 livros, que liga, com toda a força de uma determinação poética, ``A Angústia da Influência" a ``O Cânone Ocidental".

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