São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Crítico reage contra a balcanização da cultura

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que deve ler alguém que ainda quer ler, a esta altura da nossa história? Essa pergunta, aparentemente ingênua, é o ponto de partida de ``O Cânone Ocidental", o mais recente livro de Harold Bloom. Respostas a ela envolvem assuntos que vão desde a política cultural nas universidades americanas até uma bem-humorada defesa da individualidade de cada leitor e meditações melancólicas sobre o desaparecimento do cânone e do próprio hábito da leitura. São mais de 500 páginas de texto, o ``magnum opus" desse leitor onívoro, o homem borgiano que leu todos os livros.
A discussão sobre o cânone tem sido da maior importância no cenário acadêmico mundial da última década e, mais especialmente, no americano. Correntes teóricas em ascensão, como o feminismo, o neo-historicismo, a crítica pós-colonial e os estudos da cultura vêm alterando nossos padrões de resposta aos textos canônicos. Com base em argumentos como a discriminação das mulheres e das minorias, os novos críticos sustentam que é necessário identificar os pressupostos ideológicos da formação do cânone e, consequentemente, incorporar obras e autores ``esquecidos" pela ``pressão histórica" da cultura dominante.
Na prática, em países de língua inglesa, como os Estados Unidos, a Inglaterra e o Canadá, as reivindicações políticas desses grupos já produziram alterações no currículo que, segundo Bloom, são tão lastimáveis quanto irreversíveis. O ``multiculturalismo", por exemplo, não significa simplesmente a coexistência de clássicos como Shakespeare e Cervantes com autores representativos das minorias modernas, mas uma substituição daqueles por esses. Questionando a legitimidade de um julgamento ``literário", ou ``estético", os principais nomes da academia americana, hoje, não reconhecem qualquer forma de leitura que não seja engajada com um ideário social.
É contra isto -contra a ``balcanização" da literatura- que se insurge Bloom. A expansão do cânone significou, pragmaticamente, a sua destruição. ``Tudo desmoronou", diz ele, citando um poema de Yeats, ``a pura e simples anarquia se desencadeia sobre o que antes se chamava de `mundo culto' ".
Para um leitor brasileiro, essa polêmica talvez ainda seja um tanto distante -mas quem sabe por quanto tempo? Para o próprio Bloom, ela é pouco mais, no fundo, do que uma ocasião para reunir os frutos de uma vida de leitura. Deixando de fora as ``Elegias" que abrem e fecham o livro, são 20 capítulos estudando 26 autores, centrados em Shakespeare e Dante, e abarcando, entre outros, Cervantes, Montaigne, Goethe, Tolstói, Freud, Proust, Kafka, Borges, Neruda e Fernando Pessoa. Segue-se ao livro uma lista de obras, ou ``kit" de sobrevivência, concebida para o público americano, com base nas traduções existentes.
Escrito para o leitor comum, virtualmente livre de vocabulário especializado, incluindo o do próprio Bloom, o livro pode ser lido, mesmo assim, como o coroamento de uma aventura teórica iniciada há pouco mais de duas décadas, com ``A Angústia da Influência". (Incidentalmente: com respeito a um dos poucos termos técnicos que permanecem, o tradutor brasileiro optou por alterar -seja por estratégia, ou inadvertência, não fica claro- a terminologia vigente, de ``angústia" para ``ansiedade da influência".) Pois a idéia de Bloom sempre foi a de que o significado de um poema é outro poema, de que cada poeta forma-se a si mesmo pela apropriação e desvirtuamento dos precursores e que, por conseguinte, a história da literatura não é outra coisa senão a história de textos elegendo outros textos para formar, autonomamente, o cânone.
Mais importantes do que toda esta polêmica, são os comentários específicos de Bloom sobre os 26 autores. Resultado indireto de seu trabalho na última década, como editor de mais de 500 antologias de crítica, ``O Cânone Ocidental" é o mais abrangente e mais ambicioso estudo literário já publicado pelo mais abrangente e mais ambicioso dos críticos. Não há uma página que não brilhe com alguma percepção nova. Não há um parágrafo que não vibre com a energia e a eloquência de um dos autores mais pessoais da crítica contemporânea. Bloom é, ainda, como ele mesmo diz, um ``crítico cômico", um ``groucho-marxista", um grande sátiro à maneira de Jonathan Swift. É Harold Bloom contra o mundo, então: e, pela evidência deste livro, por enquanto vai dando empate.
Nenhuma resenha poderia dar conta da quantidade de argumentos e achados neste livro riquíssimo. Como tantos outros, este também não é o que parece: não é uma introdução à literatura universal, não é um tratado sobre o cânone e não é um manifesto conservador contra as novas formas da crítica. Bloom é sempre mais refinado e mais original do que isto. Talvez não haja outra forma de descrevê-lo, exceto como uma reunião, individual e idiossincrática, de reflexões sobre alguns autores centrais da nossa tradição. Vale dizer que Bloom reinventa esses 26 autores, à sua maneira, e para o benefício de todos nós, que não temos força para ler melhor do que ele.
Naturalmente, há muitos pontos em que se pode discordar de suas opiniões. Para citar apenas dois exemplos, nem todo crítico aceitaria que ``Shakespeare é o centro do cânone, porque altera a nossa cognição, ao alterar as suas formas de representação"; e poucos, hoje, concordariam que ``Neruda é o centro de toda literatura latino-americana" (frase que, certa ou errada, implicitamente exclui a literatura brasileira do mapa). Nada disso afeta a habilidade de Bloom para construir vigorosamente suas interpretações. Ele é um grande provocador, no sentido que Emerson dá à palavra: a única forma de educador, além de nós mesmos. A isto se soma uma qualidade literária da escrita. Bloom escreve como escritor, não como professor. Está mais próximo dos grandes críticos do século 19, como Sainte-Beuve, Walter Pater e William Hazlitt, do que de seus colegas na academia hoje.
``Harold Bloom é o mais raro dos críticos", escreveu há 20 anos Edward Said -atualmente um dos líderes da nova crítica, que Bloom tanto despreza. ``Uma vez que, para ele, cada poema é o resultado de uma atividade crítica, por meio da qual outro poema anterior é deliberadamente distorcido e, assim, reescrito, também o modo como ele lê a poesia é intensamente combativo, sentido, vivido. Bloom varre de cena todos os modelos habituais de história literária e de interpretação".
Vinte anos mais tarde, essas palavras continuam sendo verdade, mas num outro contexto, que as torna muito irônicas. Mais ironicamente ainda, Bloom não está longe de ser o modelo de ``crítico independente" -um pensador ativo na cultura, mas não comprometido com nenhum partido ou instituição- reclamado por Said em seu último livro, ``Representations of the Intellectual" (``Representações do Intelectual", Pantheon, 1994).
Alguém que ainda quer ler, a esta altura da história, saberá reconhecer neste livro uma fonte inesgotável de ``provocações", no sentido de Emerson. Harold Bloom é o Falstaff da crítica. É fácil discordar superficialmente dele, como é ainda mais fácil concordar. Difícil é construir, convincentemente, uma interpretação literária alternativa. Esta, afinal, sempre foi a sua lição. Harold Bloom é um mestre da contrariedade; e ele nos incita, igualmente, à discordância. Mas discordar, no caso, é uma disciplina e uma arte. Discordar de Bloom é uma educação. (Arthur Nestrovski)

O CÂNONE OCIDENTAL, de Harold Bloom, trad. de Marcos Santarrita, Objetiva, 556 págs., R$ 39,50. Nas livrarias a partir do dia 14 de agosto

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