São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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Não forcemos contas de chegada

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Raul Amaro Nin Ferreira era um estudante de engenharia na PUC do Rio de Janeiro. Militávamos no solidarismo cristão animados pelo sociólogo padre Fernando Bastos de Avila, que desvendou para nós as iniquidades sociais.
Raul era um gentleman, suave, minucioso na argumentação. Sem nenhum engajamento na dissidência armada. Foi preso em uma noite em 1971 com um mapa de ruas no porta-luvas. E morreu sob tortura. Seu corpo foi entregue a sua mãe alguns dias depois pelo Exército. Restou-nos ir à missa de sétimo dia.
Caio Prado Jr. passou um ano preso em um quartel em São Paulo nos anos 70. Pelo crime de pensar. Houve algum sentido em cassar José Aparecido de Oliveira? Ou Mário Covas, por ser parlamentar fora do gosto do ditador de plantão? Ou em expulsar Emilia Viotti da Costa do Departamento de História, sequestrar e encapuzar os membros do Cebrap, cassar tantos outros colegas apenas porque se opunham ao regime de exceção?
Estávamos cercados de desaparecimentos de parentes e de amigos, de cadáveres, de colegas professores torturados. Todo aquele tratamento truculento que os paus-mandados das elites sempre dedicam ainda às classes populares passou a ser a prática de rigor contra todos que discordavam do regime de exceção.
O conceito de ``guerra suja" é pobre, pouco rigoroso e demagógico. Depois de 1964 foi instalado no Brasil um regime de exceção que desrespeitou suas próprias leis e as garantias dos direitos no enfrentamento da dissidência, pacífica ou armada. Alceu Amoroso Lima, do alto da sua insuspeição, demonstrou que foi o ``terrorismo de Estado" que iniciou a escalada da violência.
O número esmagador de desaparecidos e mortos brasileiros, como provam os arquivos do Superior Tribunal Militar, copiados pelo ``Brasil Nunca Mais", de dom Paulo Evaristo Arns e do pastor Jaime Wright, foi consequência do emprego da violência ilegal, por funcionários do Estado, em edifícios públicos, usando equipamento pago pelo contribuinte. Poucos foram os confrontos efetivos.
Deixemos para os pesquisadores e historiadores a reconstrução dessas trevas. Não recomecem os antigos quadros do regime de exceção a falar de ``revanchismo" e a cobrar o olho por olho a viúvas e órfãos. Houve soldados e funcionários que perderam a vida no enfrentamento da dissidência armada. Devemos nos inclinar na dor de seus familiares e parentes, sem nenhuma distinção, com o mais intenso dos sentimentos de solidariedade humana.
Desconhecemos, no entanto, que haja entre os funcionários públicos do regime de exceção desaparecidos ou parentes dos mortos que não tenham sido justamente beneficiados por pensões. O contingente dos que torturaram e assassinaram, sobreviveram com aposentadorias, pensões, alguns em cargos de confiança em todos os governos desde 1985 até agora.
Não forcemos uma conta de chegada. Todas as anistias políticas são problemáticas, porque perpetuam o ciclo da impunidade e impedem a responsabilização de crimes. Mas a anistia política fechou, por bem ou por mal, qualquer possibilidade de responsabilização criminal, em ambos os lados.
Legalmente e politicamente ninguém está se arvorando em iniciar um percurso que reverta essa decisão política. Mas contar a verdade e reparar civilmente injustiças cometidas é requisito da democracia. De El Salvador e Chile até a África do Sul é assim que se faz.
Deixemos claro: a proposta do governo federal e do Ministério da Justiça, elaborada por José Gregori, antigo presidente da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, constitui um passo decisivo para a plenitude democrática que queremos ver consolidada no Brasil. Por meio dessa proposta (que esperamos seja enviada por projeto de lei ao Congresso), o atual governo democrático reconhece afinal a responsabilidade do Estado, sob os governos militares, pelos desaparecimentos e mortes resultantes da violência ilegal por agentes públicos ou em próprios do Estado.
A lei da anistia não impede que uma Comissão de Localização de Despojos também investigue e reconstitua as circunstâncias em que essas mortes ocorreram. É indispensável que as autoridades liberem o acesso a arquivos e colaborem para a identificação dos restos mortais dos desaparecidos. Para que suas famílias possam enterrá-los.
Hoje agentes do Estado continuam perpetrando graves violações de direitos humanos -maus policiais cometem execuções extralegais, torturam em próprios do Estado, organizam grupos de extermínio- ao arrepio de todas as garantias constitucionais. Conhecer os horrores da repressão arbitrária dos governos de ontem é contribuir para que a legalidade prevaleça na democracia.
A construção do estado de Direito e da democracia exige que a verdade seja contada toda vez que governos não respeitem a lei e os direitos dos cidadãos.

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