São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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um dia na cama de Susan

MARILENE FELINTO

Toda a maravilha e toda a miséria de ser mulher estão estampadas na cara de Susan Smith, a americana que matou os dois filhos bebês, prendendo-os no banco traseiro do carro e empurrando o veículo para dentro de um lago. Susan foi condenada.
Matou: como mulher que põe e dispõe sobre o destino das crias, como cadela, como gata em depressão puerperal -num átimo de segundo decidem e matam os filhotes, levam para longe, desaparecem com eles. Susan não estava louca.
Matou como quem diz: eu gerei, eu pari, eu mato. Por escravidão afetiva ao namorado, que não suportava o chororô das crianças. Por vingança contra o ex-marido, contra o pai que se suicidou quando ela era menina, contra o padrasto que a molestou quando tinha 15 anos, contra a mãe cúmplice do abuso.
Matou homens e mulheres. Matou seu próprio desvirginamento forçado, seu pavor do estupro, cortou o pênis de todos os seus homens. No dia em que afogou os filhos, Susan mentiu, foi à polícia e à televisão dizer que um homem negro tinha sequestrado as crianças. O homem negro, no estereótipo racista, tem sempre um pênis gigante, atraente e assustador ao mesmo tempo.
Susan matou o incômodo de ser mulher: os espéculos, os DIUs, os tubos de pomadas ginecológicas, os tampões, os OBs, os absorventes inadequados em tamanho e forma.
Ainda hoje, muitas mulheres não aceitam consultas com ginecologistas homens. Ainda hoje, é conhecida a resistência das meninas virgens em usar o primeiro OB e a "agonia ou coceira que muitas mulheres adultas liberadas dizem sentir com o tampão entre as pernas.
Imagino a solidão de Susan: não é a solidão normal, paradoxal, da mulher recém-penetrada, vazia e plena. A sensação de que algo entrou e saiu de nosso corpo tem dessa solidão: olha-se com um misto de gratidão o homem (por ele existir) e estranhamento por sua existência tão diferente da nossa.
A solidão de Susan é oca, faz eco, bate e volta contra gargantas de rochedos, contra o fundo dos lagos. Ela não era penetrada por seus homens, era vazada, atravessada, transpassada, nunca sentiu a presença de nada dentro de si, o corpo cheio de cavidades impreenchíveis, escavadas por traumas antigos.
Impossível ter pena de Susan. Espantoso ela não ter gritado. São sempre espantosas essas mulheres de personalidade fraca (ou fortíssima?), os indivíduos que se submetem às escravidões afetivas. Não gritou contra o padrasto. Continuou fazendo sexo com o homem que a pôs no colo e tocou seu corpo de menina em camisola antes de dormir. Foi amante do homem de sua mãe até uma semana antes de matar os próprios filhos.
Tanto fazia ser o homem de sua mãe como tanto fez ser o ex-marido, o atual namorado, o último, ou todos eles juntos. Tanto fazia.
Susan preferiu matar, já que, nela, nunca surtiu efeito a escaramuça genital feminina, a que legendariamente maravilha, seduz o homem -o mistério da cavidade genital, tão poderoso que "desconcentraria" atletas em véspera de competição, "abriria o corpo" de guerreiros, guerrilheiros e cangaceiros.
Susan matou os rasgões, as dores e crateras do parto. Preferiu mandar os filhos de volta ao útero maior, único colo e cama que reconhece: a terra, a água, o pó, o nada.

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